A longa viagem a um pequeno planeta hostil.
Sumário
Genero: F. CientíficaO trunfo de A longa viagem a um pequeno planeta hostil está na sua capacidade de criar uma gama de personagens cativantes e usá-los para discutir ideias complexas e importantes.
Algumas histórias estão mais interessadas em desenvolver ideias do que uma trama movimentada e repleta de reviravoltas. A longa viagem a um pequeno planeta hostil, ficção científica escrita por Becky Chambers, é uma romance que entra nessa categoria, trazendo uma narrativa empenhada em propor discussões a partir dos dilemas particulares de seus personagens.
A protagonista chama-se Rosemary, uma jovem que, fugindo de seu passado, busca emprego em uma nave de mineração espacial. Ela é contratada pela excêntrica tripulação da Andarilha, que inclui uma pilota reptiliana, um médico de seis membros que naturalmente muda seu sexo biológico, e um navegador que considera um vírus que está infectando-o uma entidade digna de respeito. O mais recente objetivo da tripulação é cavar um buraco de minhoca em uma antiga zona de guerra, perto de um minúsculo planeta: um trabalho que promete grande recompensa financeira e poucos problemas, uma vez que a espécie alienígena que guarda o local acabou de entrar em aliança com os clientes da nave.
A narrativa assume uma estrutura episódica envolta da viagem para tal planeta. Cada capítulo tem a responsabilidade de desenvolver um membro em especial da Andarilha, enquanto delineia algumas características dos outros.
Por meio do dilema desses personagens, o livro traz para a superfície várias discussões a cerca de problemas da humanidade, contextualizando-os com elementos de ficção científica. O choque de culturas é uma das principais formas com que isso é realizado, com alienígenas não hesitando em apontar as idiossincrasias humanas que eles consideram bizarras. A espécie da pilota reptiliana, por exemplo, chamada Aandrisk, é extremamente afável, manifestando seu carinho de forma física com frequência e, por isso, tem dificuldade em compreender toda a repressão sexual que enxerga nos humanos: tratar sexo como tabu, associar neuroticamente nudez a sensualidade e, principalmente, considerar sexo um agente corruptor, um vício e uma perversão, são atitudes absolutamente surreais para eles – que ficariam ainda mais chocados ao entender que tudo isso é fruto de séculos de influência religiosa. A visão dos Aandrisk é simples: carinho e sexo são atos legais e, contanto que a outra pessoa adulta esteja a fim, não há por que raios considerá-los reprováveis.
Religião, por sinal, é um assunto posto diretamente em pauta com o navegador, Ohan, que aceita a própria morte devido a uma infecção viral, pois assim está nos dogmas de sua espécie. Novamente, a autora usa as características de uma cultura para levar para a superfície questões pertinentes: com Ohan, por exemplo, é indagado o motivo de alguém acreditar em uma religião que lhe faz mal. Se é uma questão de fé pessoal, e não imposta por terceiros, por que não acreditar somente em algo que é bom para você e para os outros? Por que aceitar dogmas nocivos para o indivíduo ou para partes da sociedade? Se uma religião prega comportamentos preconceituosos ou sacrifícios individuais desnecessários, por que não rejeitá-la quanto a esses aspectos? Tornando o debate ainda mais complexo, a autora insere mais elementos na situação: o vírus, por exemplo, altera as capacidades cognitivas de seu portador e pode influenciar suas decisões. Os companheiros de Ohan, então, deparam-se com um dilema: se morrer fosse unicamente uma questão de escolha por parte do navegador, por mais que considerassem ela idiota e irracional, eles ainda a respeitariam. No entanto, fazendo um paralelo com a depressão, a morte de Ohan pode não ser uma escolha, mas um sintoma da doença. Nesse caso, deixar o indivíduo morrer não equivaleria a aceitar seu desejo, mas sim a deixar de tratá-lo.
A narrativa traz à tona diversas outras problematizações por meio de um uso alegórico de seus elementos fantásticos, como, por exemplo, usar clonagem para tornar mais evidente como pais costumam projetar seus próprios desejos e frustração em seus filhos – vendo-os como espelhos e, dessa forma, uma segunda chance de superar seus antigos erros –, ou apontar como a estrutura da sociedade Aandrisk desnuda a hipocrisia de quem é ao mesmo tempo contra aborto e a favor da redução da maioridade penal, considerando o potencial de vida mais importante que uma já plenamente formada.
Apesar de toda essa diversidade de ideias, a história não deixa de ter um fio narrativo costurando tudo. A aceitação do “outro” é um tema recorrente, estabelecendo a amizade e o amor como formas puras de interação, independentemente dos envolvidos: não importa se ocorrem entre indivíduos do mesmo gênero, de raças ou espécies diferentes, e até entre homem e inteligência artificial, o amor e o respeito são fundamentais e o resto é preconceito.
É incorreto, entretanto, considerar o romance de Chambers otimista, afinal no cenário futurista aqui apresentado a humanidade arruinou o próprio planeta e continua tendo sua sociedade estruturada em volta de desigualdade social. Os humanos permanecem capazes de promover conflito e desgraça em benefício próprio e lutas entre pessoas de diferentes crenças continuam algo corriqueiro. Além disso, nesse universo não é somente a humanidade que é capaz do mal, visto que as outras espécies também apresentam sua própria parcela de guerras, racismos e campos de concentração.
Dessa forma, a importância temática da tripulação da Andarilha é justamente sua capacidade de oferecer uma alternativa de comportamento: a ideia de que se pode agir de outra forma e que a vida de todos apenas melhoraria se assim fosse. Assim, os personagens principais beiram o estereótipo do canadense legal: são todos proativos em seu companheirismo e compreensivos uns com os outros, oferecendo um ombro amigo sempre que podem e entendendo que ninguém é de ferro, muito menos sob pressão constante, como em um ambiente de trabalho.
Não é à toa que os eventuais antagonistas representam o que há de pior no universo: uma espécie alienígena teocrática, cuja ideologia é baseada em uma mente compartilhada forçada, pois que qualquer ideia diferente deve ser imediatamente eliminada antes que acabe destruindo o paradigma de poder atual. Em outras palavras, todos precisam pensar igual para manter a ordem. Se a tripulação da Andarilha enxerga o outro com o mesmo carinho com que enxergam o similar, os antagonistas veem o diferente como algo perigoso e disruptivo. Em determinada cena, um coadjuvante chega a defender que a maior parte dos problemas do mundo é causada por pessoas sendo babacas e, para a narrativa, ver o outro com um olhar hostil é a origem desse comportamento.
É notável o trabalho feito por Chambers na construção do romance. É essencial, por exemplo, que a inteligência artificial da Andarilha revele uma complexidade de sentimentos notável para garantir a verossimilhança de sua relação amorosa. Dessa forma, somente na primeira conversa com um determinado personagem, a IA, chamada Lovey, demonstra ciúme, interesse, preocupação, passivo agressividade e até chega a flertar com o técnico. Sua senciência, portanto, nem chega a ser questionada pela tripulação, que, sempre consistentes em serem inclusivos, considera ela mais um membro sem pensar duas vezes.
A autora também merece elogios por proporcionar algumas cenas criativas durante a história: apenas para ilustrar, durante a perfuração de um buraco de minhoca, há um momento em que os diálogos dos personagens passam a se repetir sem aviso, indicando que ficaram presos em um bolsão temporal.
O livro, todavia, não está livre de descambar para o clichê de vez em quando – como a velha e batida explicação de buraco de minhoca com uma folha de papel dobrada– e de sofrer com problemas de ritmo – a maioria dos episódios, apesar de importante tematicamente e para o desenvolvimento dos personagens, em nada avança a trama principal.
Não obstante, o trunfo de A longa viagem a um pequeno planeta hostil está na sua capacidade de criar uma gama de personagens cativantes e usá-los para discutir ideias complexas e importantes. A autora usa o outro para construir um olhar interior, tracejando, por meio dos alienígenas e das naves espaciais, o que há de melhor e pior na humanidade, enquanto oferece uma solução para nossos problemas que é ao mesmo tempo simples e eficaz: basta parar de agir como um babaca.
por Rodrigo Lopes C. O. de Azevedo.
31 de dezembro de 2017.