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As mentiras de Locke Lamora.

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Posted 09/09/2016 by in Fantasia

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Nota:
 
 
 
 
 

4/ 5

Sumário

Genero:
 
Autor:
 
Editora:
 
Idioma Original:
 
Título: As mentiras de Locke Lamora.
 
Título Original: The Lies of Locke Lamora.
 
Tradução: Fernanda Abreu.
 
Edição: 2014.
 
Páginas: 464.
 
Capa: Benjamin Carré / Bragelonne 2007
 
Resumo:

As Mentiras de Locke Lamora é um ótimo livro de fantasia, contendo uma história complexa e bem desenvolvida, com um protagonista fascinante e trágico. É impossível deixar de notar, porém, que ele teria sido ainda melhor caso Lynch tivesse mostrado um pouco mais de confiança no leitor.

by Rodrigo Lopes C. O. de Azevedo
Full Article

As mentiras de Locke Lamora, primeiro livro da série Nobres Vigaristas escrita por Scott Lynch, é um romance que se destaca por sua proposta de inserir uma trama sobre golpes em um universo de fantasia. Trazendo uma história bem amarrada, o livro apenas falha em, volta e meia, tratar o leitor com a mesma condescendência com que o protagonista tenta enganar suas vítimas.

Locke Lamora é um menino órfão que, após ser recrutado pelo Aliciador da cidade de Camorr, passa a viver junto a um bando de garotos, cometendo pequenos furtos para seu mestre em troca de comida. Sua pró-atividade e ambição, entretanto, passam a irritar o Aliciador, que decide vendê-lo para um sacerdote. Dessa forma, Lamora sobe na carreira de ladrão, deixando de bater carteiras para trabalhar em uma Igreja.

O protagonista é um jovem sagaz e de traços rústicos, cujo sorriso irônico o faz “parecer uma esguia gárgula”. Sua personalidade é delineada pelos eventos iniciais, que confirmam sua inventividade em  bolar planos cada vez mais engenhosos, mas também revelam um desapego pela própria vida, que pode levá-lo a atos imprudentes. Como um dos personagens o descreve: “Se ele estivesse com o pescoço cortado e um galeno estivesse tentando costurá-lo, Lamora roubaria a agulha e o fio e morreria rindo”.

São essas características que formam seu arco narrativo trágico: Locke é um ladrão de ambição e inteligência, mas que tem o costume de negligenciar os possíveis efeitos colaterais de suas ações mirabolantes, acabando por colocar inocentes ou aqueles que ama em situações de perigo.

As mentiras de Locke Lamora acompanha os preparativos para um dos maiores golpes do garoto – roubar a fortuna de um nobre chamado Dom Salvara –, que pode estar correndo o risco de fracassar devido ao surgimento do Rei Cinza na cidade de Camorr: um misterioso indivíduo que anda assassinando os principais ladrões do lugar.

O livro é estruturado com os eventos do presente sendo intercalados com flashbacks sobre o aprendizado de Locke na Igreja. Esses “interlúdios” são posicionados de forma a refletir os acontecimentos que se seguirão na história ou a complementar os que acabaram de acontecer. A narrativa mais atual também não é contada de maneira inteiramente cronológica, misturando a ordem de pequenos eventos para proporcionar reviravoltas que trabalham com a falta de informação do leitor: ele não sabe se o que está sendo falado é verdade e nem se quem está falando é realmente quem se diz ser.

Lynch, entretanto, não deixa de trabalhar com ironia dramática em determinados instantes, entregando mais informações para o leitor do que para os personagens. Tal ferramenta narrativa é usada ora para fazer humor, como a graça resultante de Lamora dar um alerta justamente a sua vítima (“Nós temos um ditado: a sorte imerecida esconde sempre uma armadilha”), ora para criar suspense, com o leitor sabendo de antemão que o protagonista está caminhando indefeso para uma armadilha.

O autor também merece reconhecimento pelo seu trabalho com cores, em especial o vermelho. Vermelho é uma cor costumeiramente associada à noção de perigo e Lynch mostra-se rigoroso em sua utilização, inserindo-a apenas no início de cenas em que algo ruim está, de fato, prestes a acontecer. Dessa forma, autor torna a cor um alerta para o leitor, aumentando a tensão sempre que ela surge. Em outros momentos, ele expande um pouco os tipos de uso do vermelho, mas mantendo o significado geral, colocando-o, por exemplo, como a cor de um saco de veneno ou usando-o para preparar a atmosfera de uma confissão que narra atos violentos: “Nesse ponto, Locke parou de falar e mexeu uma pequena lamparina, fazendo o brilho vermelho tremeluzir em seu rosto”. Por fim, Lynch associa o vermelho a um conceito importante para a trama, misturando as ideias de vingança e justiça, pintando-as todas de sangue.

Além disso, é importante destacar pelo menos um dos simbolismos que Lynch constrói em sua história. A luta com um tubarão a que Locke assiste ao lado de Dom Salvara, por exemplo, reflete sua relação de predador com a vítima de seu golpe. Simbolismo este que é corretamente expandido em outro momento, em que o tubarão assume o mesmo significado, mas com uma carga maior de literalidade.

Contudo, o trunfo de As mentiras de Locke Lamora reside – como é de hábito em histórias sobre golpistas – em suas reviravoltas. Lynch posiciona vários elementos durante a narrativa que são retomados mais adiante – alguns mais assinalados que outros – e surpreende o leitor principalmente na forma implacável com que desenvolve os acontecimentos. Há uma quebra de expectativas causada pelas súbitas mudanças de tom: como o protagonista é muito confiante, ele transmite uma atmosfera de segurança e invencibilidade. Quando esta é quebrada, o choque é grande.

Quanto ao universo fantástico apresentado, a cidade de Camorr destaca-se por suas evidentes inspirações italianas. Trata-se de uma cidade tipicamente Veneziana, construída por inúmeros canais e becos “com mais gangues que cheiros ruins”, marcada pela distância social entre suas classes, com direito a grupos de órfãos que roubam para sobreviver dormindo em cemitérios, enquanto nobres relaxam e divertem-se em seus pomares flutuantes. A influência italiana na elaboração do cenário mostra-se evidente também nos nomes dos personagens (Dom Salvara), em suas predileções por vinhos e na organização mafiosa dos criminosos.

O livro, todavia, peca na forma com que transmite para o leitor essas informações. O início, particularmente, é repleto de diálogos expositivos, com personagens “lembrando” os outros frequentemente das características do universo ou sobre eventos passados. As primeiras conversas entre Locke e Dom Salvara são particularmente ruins nesse aspecto, configurando-se verdadeiros infodumps sobre o universo, como prova o seguinte trecho:

“Nos últimos 250 anos, Emberlane sofreu três invasões. Sejamos francos: os ritos de sucessão do reino dos Tutanos muitas vezes incluem exércitos  e sangue bem antes de incluir bênçãos e banquetes. Quando os Grafs brigam, as montanhas de Autershalin constituem nossa única barreira terrestre e lá se travam intensas batalhas, que inevitavelmente se espalham pelas encostas orientais, atravessando os vinhedos da Casa de bel Auster. Dessa vez não vai ser diferente. A Mesa Negra está avançando sobre nossa direção! Milhares de homens e cavalos vão atravessar os desfiladeiros, pisotear os vinhedos, saquear tudo em volta. Talvez seja até pior, agora que temos óleo de fogo. Daqui a seis meses, nossos vinhedos podem estar reduzidos a cinzas”.

Apenas duas linhas após esse diálogo há outro ainda maior e igualmente didático. Pior que essa exposição inicial, entretanto, são os instantes em que Lynch – numa clara falta de confiança em seu leitor – utiliza os flashbacks para explicar o contexto de situações que poderia muito bem ser inferido pelas reações e falas dos personagens. O momento em que um “mago-servidor” aparece pela primeira vez é o mais grave, pois além da narrativa ser interrompida por um dos flashbacks puramente expositivos, cuja única função é detalhar o que é um mago-servidor, este ainda foge da estrutura estabelecida, não se constituindo um “interlúdio”. Ou seja, a cena quebra não somente o ritmo da narrativa, como também sua consistência formal.

Além disso, algumas dessas cenas sobre a criação de Locke são um tanto inúteis e alongam desnecessariamente a história: se a narração de como um dia ele foi trabalhar como agricultor em um campo fosse completamente eliminada da narrativa, por exemplo, nenhuma informação importante seria perdida.

As mentiras de Locke Lamora é um ótimo livro de fantasia, contendo uma história complexa e bem desenvolvida, com um protagonista fascinante e trágico. É impossível deixar de notar, porém, que ele teria sido ainda melhor caso Lynch tivesse mostrado um pouco mais de confiança no seu leitor.

por Rodrigo Lopes C. O. de Azevedo.

09 de setembro de 2016.


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Rodrigo Lopes C. O. de Azevedo


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