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Carbono Alterado.

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Posted 01/15/2018 by in F. Científica

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Nota:
 
 
 
 
 

4/ 5

Sumário

Genero:
 
Autor:
 
Editora:
 
Idioma Original:
 
Título Original: Altered Carbon
 
Tradução: Edmo Suassuna.
 
Edição: 2017.
 
Páginas: 490.
 
Capa: Tithi Luadthong/Shutterstock
 
Resumo:

Longe de adotar um tom reflexivo, como faz os dois primeiros filmes Blade Runner e o Ghost in the Shell de 1995, Carbono Alterado não chega a revolucionar os gêneros pelo qual transita, mas não deixa de se configurar um exemplar competente deles.

by Rodrigo Lopes C. O. de Azevedo
Full Article

Com temática cyberpunk, Carbono Alterado é uma ficção científica noir pouco preocupada com a filosofia por trás da tecnologia fantástica de seu universo, colocando o foco, em vez disso, em sua aplicabilidade prática. O romance, escrito por Richard Morgan, não está interessado em como seus personagens lidam com questões de memória e identidade, mas em como eles conseguem resistir à opressão de uma sociedade capitalista que não para de descobrir novas formas de abusar desses elementos.

O protagonista, Takeshi Kovacs, começa a narrativa sendo assassinado pela polícia. Quando acorda, sua consciência está instalada em outro corpo e sua liberdade encontra-se atrelada a uma única condição: resolver o assassinato do milionário Laurens Bancroft.

A narrativa transcorre 500 anos no futuro, quando a  consciência de um indivíduo pode ser digitalizada por meio do armazenamento de suas memórias em um aparelho localizado em sua espinha dorsal. Como viagens interplanetárias ocorrem com o envio digital dessa consciência, que é então baixada e instalada em outro corpo no novo planeta, o treinamento militar passa a intensificar ainda mais o desenvolvimento de técnicas mentais em seus soldados de elite, uma vez que os corpos que vestem costumam variar entre as batalhas. Kovacks é um desses supersoldados e sua condição precária especial – preso após ter sido morto por policiais – torna-o um ótimo candidato para ser manipulado por Bancroft.

O problema do milionário é simples. A polícia encontrou seu cadáver em sua própria casa, tendo levado um tiro na cabeça, e considerou o caso um suicídio. Salvo por um upload remoto antigo, visto que o aparelho que guardava suas memórias foi destruído com o disparo, Bancroft recusa-se a acreditar que tirou a própria vida e contrata um detetive particular para descobrir o que de fato aconteceu.

Kovacks, entretanto, mostra-se um homem difícil de controlar. Em uma primeira análise, ele funciona como um detetive noir clássico, com fala grossa, passado trágico e uma visão de mundo niilista. O personagem entende como as coisas funcionam e não vê esperança de melhora, acreditando que a desigualdade social e a exploração dos mais fracos por grandes corporações são constantes em qualquer planeta. Em determinado momento, Kovacks pensa em tudo o que poderia dizer para reconfortar certa pessoa, mas escolhe permanecer calado mesmo assim, acreditando que a dor dela continuaria inalterada não importa o que dissesse: o detetive não enxerga utilidade em em determinadas ações, por entender que nada mudará.

Dessa forma, o protagonista surpreende justamente por não conseguir manter essa passividade em determinadas situações, ficando eventualmente farto das injustiças que vivencia. Sua investigação o leva ao submundo da cidade de Bancroft, passando por casas de prostituição, ringues de luta ilegal e clínicas de tortura digital. A tecnologia de preservação de consciência, que a princípio parece uma cura para a mortalidade, rapidamente revela-se uma maldição, abrindo portas para situações horríveis: alguém comprar seu corpo original e usá-lo como artigo de luxo ou como saco de pancadas pessoal não é nada comparado à possibilidade de sua consciência ser inserida em uma simulação de tortura num computador, que pode rodar o equivalente a um ano das mais variadas e violentas práticas em apenas algumas horas. Assim, cada ato de brutalidade ou de abuso que Kovacks presencia vai tornando-o cada vez mais revoltado internamente e, em seus derradeiros momentos de explosão, o detetive para de se importar com as consequências de seus atos e transforma-se num justiceiro sanguinário incontrolável.

O melhor trecho para explicar esse traço de Kovacks faz parte do brilhante discurso político que abre o capítulo 15: “O lado pessoal, como todo mundo adora dizer, é político. Então, se algum político idiota, algum manipulador do poder, tentar colocar em práticas políticas que prejudicam você ou seus entes queridos, leve para o lado pessoal. Sinta fúria. As Engrenagens da justiça não servirão aqui; são lentas e frias e pertencem a eles, em hardware e software. Só os poucos significantes sofrem nas mãos da justiça; as criaturas do poder se esquivam com uma piscadela e um sorriso. Se você quiser justiça, terá que fazer isso com as próprias mãos. Leve para o lado pessoal”.

Partes desse trecho – que, num cinismo cômico, é considerado uma citação de um livro ficcional chamado “Coisas que eu já deveria ter aprendido” – vão surgindo em meio aos pensamentos de Kovacks durante o resto da narrativa, ilustrando a base de seu raciocínio e explicando suas ações mais impulsivas. O protagonista sabe que faz parte de todo esse sistema injusto a e, ainda pior, que está trabalhando diretamente para um daqueles que o organiza, mas, pelo menos, se importa o suficiente para, em alguns instantes, tentar fazer alguma diferença mesmo achando que o gesto é inútil.

Inegavelmente política, a narrativa coloca um grande foco na relação de conflito em tecnologia e religiões, principalmente a católica. A primeira personagem a expressar algum sentimento com relação ao catolicismo é uma policial com uma visão pragmática negativa, enxergando o catolicismo como um empecilho à justiça. Nesse mundo,católicos são um dos poucos grupos a não aceitar a ressurreição do indivíduo em outro corpo, acreditando que a alma morre com o primeiro, estando atrelada a ele. Isso torna a eliminação de testemunhas católicas uma prática recorrente, pois, ao contrário do resto, elas não vão retornar depois e acusar seus assassinos. No mesmo sentido, para entrar no mundo do crime, da prostituição ou em qualquer trabalho em que o descarte eventual do indivíduo é inevitável, ser católico torna-se um diferencial importante. A religião, portanto, é tratada pela narrativa como uma ferramenta de controle e dominação política e econômica, auxiliando qualquer um com intenções criminosas, não sendo surpreendente, portanto, que os personagens ataquem com frequência o catolicismo, seja diretamente, acusando sua cultura de ser atrelada ao conceito de tirania, seja com piadas, comparando o silêncio de certo ato, por exemplo, ao de um “orgasmo católico”.

Mostrando-se consistente, a narrativa também acerta na forma com que constrói o mistério principal sobre a morte de Bancroft: o que importa não é causar surpresa com a revelação – que dificilmente surpreenderá –, mas desenvolver os temas do livro a partir dos motivos e das circunstâncias que levaram ao evento, passando pela religião e culminando na exploração e opressão social.

A questão capitalista também não é esquecida, acrescentando um mecanismo de opressão terrível: com a possibilidade de ser manufaturado, o corpo humano completa sua metamorfose em commodity. Os poucos grandes milionários tornam-se praticamente imortais com seus inúmeros clones à disposição, enquanto a classe trabalhadora precisa muitas vezes vender seu próprio corpo original para pagar suas dívidas, na esperança de que no futuro conseguirá outro similar de volta – esperança que é inevitavelmente frustrada. Assim, a biotecnologia em Altered Carbon torna até a manutenção de uma identidade física como um luxo social.

Por fim, vale apontar como a narrativa não foge das convenções do noir, oferecendo uma investigação cheia de desdobramentos, uma atmosfera opressiva e melancólica e personagens femininas que variam entre o femme fatale, como a esposa de Bancroft, e a peça de barganha dos vilões – embora uma personagem em específico felizmente quebre o padrão, chegando a resgatar o protagonista e eliminar seu algoz.

Longe de adotar um tom reflexivo, como faz os dois primeiros filmes da série Blade Runner e o Ghost in the Shell de 1995, Carbono Alterado não chega a revolucionar os gêneros pelo qual transita, mas não deixa de se configurar um exemplar competente deles. Com um protagonista fascinante e uma trama cheia de ramificações políticas, o romance certamente representa uma ótima estreia para Richard Morgan.

por Rodrigo Lopes C. O. de Azevedo.

15 de janeiro de 2018.

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Rodrigo Lopes C. O. de Azevedo


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