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Das paredes, meu amor, os escravos nos contemplam.

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Posted 12/10/2015 by in Comédia

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3/ 5

Sumário

Genero: , ,
 
Autor:
 
Editora:
 
Idioma Original:
 
Edição: 2014.
 
Páginas: 264.
 
Capa: Kiko Farkas e Anfré Kavakama/Máquina Estúdio
 
Resumo:

Das paredes, meu amor, os escravos nos contemplam, escrito por Marcelo Ferroni, é um livro cujo estilo se sobrepõe à história. Trata-se de um suspense de detetive clássico, um mistério de quarto fechado, com um protagonista antipático e uma forma excêntrica que, infelizmente, distraem e entediam o leitor nas mesmas proporções, impedindo-o de se importar com os acontecimentos e com os personagens.

by Rodrigo Lopes C. O. de Azevedo
Full Article

Das paredes, meu amor, os escravos nos contemplam, escrito por Marcelo Ferroni, é um livro cujo estilo se sobrepõe à história. Trata-se de um suspense de detetive clássico, um mistério de quarto fechado, com um protagonista antipático e uma forma excêntrica que, infelizmente, distraem e entediam o leitor nas mesmas proporções, impedindo-o de se importar com os acontecimentos e com os personagens.

O livro conta a história do escritor frustrado Humberto Mariconda, cuja última obra, a coletânea “A porrada na boca risonha e outros contos”, não fez muito sucesso. Um dia, Humberto é convidado por uma mulher que conheceu em um jantar – e com a qual não manteve muito contato – a ir passar o verão na casa de sua família no interior de São Paulo. Humberto, que havia se apaixonado pela jovem praticamente a primeira vista, aceita imediatamente.

Nos agradecimentos do livro, o autor afirma que em nenhum momento assumiu “o compromisso da realidade” ao contar sua história. Isso é percebido no próprio convite feito a Humberto. A mulher, Júlia Damasceno, jamais havia demonstrado interesse no escritor, agindo sempre com indiferença. O convite, então, é súbito e inesperado, mas Humberto trata-o com naturalidade. Todavia, isso não é um mistério a ser desvendado ao longo do livro, mas apenas o primeiro de muitos eventos estranhos que formam a narrativa.

Afinal, a história, contada em primeira pessoa por Humberto, é constituída por várias situações igualmente inusitadas, embora os personagens raramente apontem esse caráter delas. Nesse sentido, a obra de Marcelo Ferroni busca clara inspiração nos romances ingleses de detetive do século XIX e XX: o assassinato que ocorre, por exemplo, é mais um inconveniente do que uma tragédia para maior parte dos envolvidos.

A família de Júlia Damasceno é encabeçada por Dr. Ricardo, um sujeito que fez fortuna vendendo filtros de água e que parece acreditar viver no século XVIII. Ele simboliza as contradições da família Damasceno: defende a meritocracia e arranja emprego para os familiares; considera-se a vanguarda do Brasil e trata os empregados praticamente como escravos; acredita representar o futuro ideal para a nação e valoriza a memória da família escravocrata que construiu a fazenda.

Ferroni apresenta os integrantes da família Damasceno de forma exagerada, colocando-os como caricaturas da classe média. Há uma personagem, por exemplo, que não hesita em imediatamente culpar a empregada doméstica por qualquer desaparecimento de joias ou outros bens da casa e que sempre aconselha as pessoas a trancar suas portas e a esconder seus pertences para não dar chance para os empregados furtarem.

É evidente, ao longo do livro, como o autor diverte-se com sua crítica ao constantemente caracterizar os membros da família Damasceno como tolos repugnantes que sofrem de delírios de grandeza. Assim, ora os personagens dizem coisas absolutamente reprováveis (“Naquela época, podíamos açoitar, querida”), ora tecem comentários cujas contradições denotam sua própria futilidade (“O aquecimento global está virando tudo pelo avesso. Vi de perto, pela TV, a força dos tufões nos Estados Unidos, o tsunami no Japão”), ora fazem reclamações tipicamente burguesas (“A sociedade brasileira é injusta com sua elite produtiva”).

Enquanto apresenta essa galeria de personagens ao leitor, o livro é divertido em seus exageros. Mas, após seu ponto de virada principal – o assassinato – ele vai perdendo gradativamente a força. O motivo é simples: o protagonista não parece se importar com o crime.

Humberto não se interessa em descobrir de fato quem é o assassino: o personagem só tem olhos para Júlia. Nos breves momentos em que age como detetive, ele o faz para impressioná-la. Humberto não reage aos eventos e aos personagens, ele fica apenas admirando platonicamente a mulher, irritando-se com um rapaz que parece também gostar dela e sendo menosprezado pelo resto da família Damasceno. Com isso, o leitor começa a sentir certa antipatia por ele: é um personagem que surge como um tolo, desprovido de senso de humor, que passa maior parte do tempo iludindo-se com um amor claramente não correspondido e que sequer movimenta significativamente a trama.

Como Humberto também se configura o narrador da história, a antipatia é intensificada. Sua narração é especialmente caótica, misturando discurso direto e indireto sem um critério facilmente identificável. Isso causa uma profunda estranheza no leitor, adequando-se a ideia de quebra de compromisso com a realidade

Tal efeito é claramente perceptível no seguinte trecho:

“- Veja se não caiu debaixo da sua poltrona, falou Isabel. Desça daí. O marido falou: Felipe, não toque em nada até eu descer. Eugênio havia se agachado e Mauro falou, Você também. Colocou-se de cócoras. A mulher reclamou que era muito afobado, muito cabeça-dura, havia destruído uma prova importante do crime. Que prova, mulher?, você não sabe do que está falando, e ergueu-se de braços cruzados. Felipe tampouco ajudava nas buscas. Foi Eugênio quem a encontrou. Mê dê ela aqui, falou Isabel. Não encoste muito por causa das digitais. (Mauro riu, sem paciência.) Todos para fora. Já. Para fora. Deu o lampião a Mauro, continuou com a arma. Saímos em fila indiana”.

Nesse exemplo, é possível observar o discurso direto transformando-se em indireto e diversas vozes mesclando-se no processo: há a de Humberto (“Saímos em fila indiana”), a de Isabel (“Não encoste muito por causa das digitais”) e a de Mauro (“Você também”). Essa mistura exige uma atenção redobrada do leitor para compreender os acontecimentos, além de possibilitar que o autor utilize alguns recursos narrativos peculiares.

Um dos efeitos causados, por exemplo, é o de destacar os diálogos realizados com travessões. Por causa da confusão de vozes que existe na narração de Humberto, o momento em que finalmente surge um travessão com uma fala é quase que um alento para o leitor, que agradece aquele breve momento de fácil compreensão. Desse modo, Ferroni pode plantar pistas de forma bem óbvia no meio do discurso que ainda assim elas passam despercebidas.

Todavia, o estilo dessa narrativa apresenta um problema grave no livro: como o protagonista já é um personagem distante do leitor, a confusão gerada acaba somente por torná-lo ainda mais intragável. Ou seja, o leitor fica com a impressão que nem contar uma história o sujeito sabe fazer direito, ainda que seja escritor – daí sua falta de sucesso?

Além disso, vale notar que o leitor acaba ficando mais preocupado em entender o que está sendo dito do que em refletir sobre o conteúdo do que é narrado. Ou seja o estilo da narrativa acaba se sobrepondo à história e dificultando desnecessariamente a reflexão crítica.

Não que Ferroni não tenha seus méritos narrativos. Pelo contrário, há momentos no livro que revelam um amplo domínio sobre a forma da história. Logo após a descoberta do assassinato, por exemplo, para indicar que o choque fez Humberto desligar-se momentaneamente do mundo, a narração vai para a terceira pessoa e apenas volta para a perspectiva do protagonista quando alguém lhe diz “Acorde”. É um recurso inusitado, mas eficaz em transmitir o efeito pretendido.

Além disso, o palco de suspeitos é construído de forma exemplar, com a possível motivação para o crime de boa parte dos personagens sendo cuidadosamente plantada sem chamar muita atenção para si.

É uma pena, portanto, atestar que os melhores momentos do livro deixam de causar o devido impacto graças à apatia de Humberto e a uma narração confusa. Desse modo, Das paredes, meu amor, os escravos nos contemplam configura-se um livro com potencial desperdiçado, cuja resolução pouco significará para o leitor.

por Rodrigo Lopes C. O. de Azevedo.

10 de dezembro de 2015.


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Rodrigo Lopes C. O. de Azevedo


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