Em algum lugar nas estrelas.
Sumário
Genero: Drama, InfantojuvenilEm algum lugar nas estrelas conta uma história sobre perda e amor, sobre encontrar um norte na figura de um amigo. É uma pena, portanto, que ela demonstre um descaso tão grande com sua consistência interna, trazendo uma história que até comove, mas também lembra o leitor frequentemente de sua própria falsidade.
Escrito pro Clare Vanderpool, Em algum lugar nas estrelas é um livro infantojuvenil comovente, cuja narrativa é construída por um excesso de alegorias, paralelos e coincidências. A autora, mesclando fantasia com realidade, acaba ela própria se perdendo no desenvolvimento da história e usando as coincidências mais como muleta do que como ferramenta narrativa.
A trama acompanha a viagem de dois garotos por uma floresta no Maine em 1945. Jackie, o protagonista, é um menino de 13 anos que acabou de perder a mãe e ser posto em uma escola militar pelo pai. Lá, ele encontra um garoto esquisito, chamado Early Auden, com quem acaba estabelecendo um vínculo de amizade. Durante o natal, Early o convida a partir em uma aventura e Jackie, sentindo-se sozinho, aceita.
Apesar de Jackie ser o protagonista, é Early o personagem mais interessante do livro. O menino mescla características de pessoas superdotadas (ele sabe mais de cem dígitos do número Pi de cor) com aquelas que sofrem de síndrome de Asperger (ele tem dificuldades em fazer inferências pragmáticas). Além disso, é metódico, ouvindo apenas determinados músicos em cada dia da semana (Louis Armstrong às segundas e Sinatra às quartas), e obsessivo, só tendo em mente seu plano mirabolante para descobrir o verdadeiro paradeiro de seu irmão morto durante a Segunda Guerra Mundial.
O grande tema de Em algum lugar nas estrelas é a dificuldade em aceitar a partida de um ente querido. Jackie perdeu a mãe, o que o tornou revoltado para o mundo e o fez odiar o pai. Early, por outro lado, recusando-se a aceitar a morte do irmão, cria toda uma narrativa para ajudá-lo a processar o ocorrido.
Essa narrativa transita entre o improvável e o fantástico. Early, por exemplo, chega a pesquisar os dados meteorológicos do dia da fatalidade e, comparando-os a opiniões pessoais (“Ele era o melhor nadador do mundo”), constrói argumentos que provam que a morte do irmão é implausível. No entanto, Early também passa a enxergar, nos dígitos do número Pi, personagens e histórias que, quando analisadas, supostamente revelam a verdadeira localização do irmão. Para isso, ele quer repetir a jornada de Pi pelo mundo e partir floresta a dentro com Jackie em um barco a remo.
Early é caracterizado já no início do livro como um menino de sonhos impossíveis: em sua primeira cena, Jackie o vê na praia construindo um muro de areia para conter o oceano. A narrativa de Em algum lugar nas estrelas é estruturada de forma a revelar aos poucos as características do menino – o que é apontado pela ambiguidade do próprio título original, “Navigating Early”, em que “Early” pode ser tanto “cedo” quanto o nome do personagem. O título, assim, revela a importância do processo de descoberta sobre o garoto.
Já o protagonista aceita fazer companhia a Early por ele próprio se sentir sozinho e empatizar com a dor do amigo. Como é típico de romances infantojuvenis, Jackie encontra-se perdido, tentando achar um rumo na vida, sem sucesso: “Olhar para a janela era como encarar um oceano profundo, escuro, e eu me imaginei flutuando, boiando à deriva sob um céu sem estrelas”, ele reflete uma hora. Early, então, serve como seu guia, função que assume também de forma literal, uma vez que realmente guia o barco que o protagonista rema.
A jornada dos dois pela floresta é repleta de aventuras, com direito a encontros com piratas, ursos e personagens misteriosos. Ao mesmo tempo, Early vai contando a história de Pi, que, essencialmente alegórica, guarda intrínseca relação com os eventos reais.
O problema dessa ideia é que em muitos casos, Early, fazendo jus a seu nome, conta a história antes dos eventos ocorrerem. Ou seja, o menino acaba prevendo o futuro. A autora ainda faz questão de estabelecer uma aura de misticismo ao redor do personagem, colocando-o, por exemplo, dizendo a mesma frase de efeito da mãe de Jackie e desaparecendo de repente assim que o amigo percebe a coincidência.
No entanto, tal característica é eventualmente abandonada, visto que Early é apenas um menino. Isso não chega a ser uma reviravolta, porque é óbvio desde o início que ele não tem habilidades paranormais. Ou seja, tais momentos de mistério e magia surgem artificiais logo que aparecem, jamais ocultando o fato de que se configuram apenas uma ferramenta para Vanderpool criar algum nível de tensão.
Essa desconexão entre fantástico e real ocorre ao longo do livro inteiro, o que é irônico, uma vez que a história mágica de Pi se mistura com a realidade. No fim, há um paradoxo na narrativa de Em algum lugar nas estrelas: se, por um lado, ela é construída pela confusão entre o real e o imaginário da mente de Early, por outro, a implausibilidade e, pior ainda, a negação de algumas das ligações entre as duas esferas acaba reforçando a divisão entre elas.
Dessa forma, quando as coincidências começam a ficar frequentes, o leitor que repara nessa contradição é estimulado a questionar a natureza delas, em vez de aceitá-las como parte do universo. Há uma cena na história de Pi, por exemplo, em que o personagem encontra uma senhora que o confunde com seu filho perdido. Logo após contar isso, Early se depara com uma senhora que confunde Jackie com seu filho perdido. A coincidência, então, assume um caráter falso, artificial, devido ao absurdo.
No romance, o imaginário transborda para o real, embora não seja comportado e aceito totalmente por este: Early não é mágico, o mundo não é mágico e os acontecimentos são explicados racionalmente, mas ainda assim, o menino prevê o futuro com riqueza de detalhes. Até o sabor da geleia favorita do filho perdido da senhora bate com o de Jackie.
Em outras palavras, o defeito principal da narrativa não é a inverossimilhança, mas ela não ser condizente com o universo dos personagens. Como o mundo de Jackie e Early reflete o real, o fantástico é rejeitado por definição.
Vanderpool, pelo menos, tem mérito por usar essas coincidências para criar paralelos: a senhora da floresta, por exemplo, perdeu o filho e Jackie a mãe, então eles se completam. No entanto, a estrutura do livro acaba tornando-se repetitiva devido à frequência com que a autora utiliza essa ferramenta: a jornada de Pi reflete em detalhes coincidentemente a de Jackie e, como Pi representa o irmão de Early, Jackie acaba assumindo a mesma função. Em cada capítulo, portanto, há alguma coincidência que liga os personagens. Lembrando, novamente, que Vanderpool não parece se importar com o quão inexplicável essa coincidência possa ser, o importante para ela é só fazer a conexão.
O final do livro, apropriadamente, representa o ápice desse problema. É um amálgama de revelações que confirmam Early como um profeta sensacional, cujas previsões, mesmo quando arbitrárias e ilógicas, sempre se tornam realidade.
Não obstante, um último elemento que a autora trabalha bem, mesmo que só pontualmente, é dar função narrativa para a habilidade de Early de ver cores e texturas em números. Em um determinado momento, por exemplo, ele só enxerga zeros na história de Pi a partir do ponto em que estão e, como zeros parecem sangue para ele, uma carga de tensão – dessa vez orgânica – é injetada na narrativa.
Em algum lugar nas estrelas conta uma história sobre perda e amor, sobre encontrar um norte na figura de um amigo. É uma pena, portanto, que ela demonstre um descaso tão grande com sua consistência interna, trazendo uma história que até comove, mas também lembra o leitor frequentemente de sua própria falsidade.
por Rodrigo Lopes C. O. de Azevedo.
01 de abril de 2017.