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Gardens of the Moon / Jardins da Lua.

2
Posted 03/12/2015 by in Fantasia

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Nota:
 
 
 
 
 

4/ 5

Sumário

Genero:
 
Autor:
 
Editora: ,
 
Idioma Original:
 
Título: Gardens of the Moon / Jardins da Lua.
 
Edição: 2004.
 
Páginas: 666.
 
Capa: Steve Stone.
 
Resumo:

Em Jardins da Lua, o autor constrói uma narrativa complexa, torna a exposição do universo gratificante, discute assuntos importantes e conta diversas histórias que empolgam pelo modo com que se conectam e concluem. Apesar disso, o que mais salta aos olhos durante a leitura é o fato de que o livro tem plena fé na capacidade do leitor e, além de não subestimar sua inteligência, ainda estimula seu raciocínio.

by Rodrigo Lopes C. O. de Azevedo
Full Article

Uma dos mais recorrentes problemas de autores de literatura fantástica concerne à apresentação do universo criado por eles: ora essa exposição é vangloriada demais na narrativa em detrimento dos personagens e da fluidez da leitura, ora é posta de lado, falhando em captar o interesse do leitor. Em Gardens of the Moon / Jardins da Lua, a maior conquista do arqueólogo Steve Rune Ludin (que escreve sob o pseudônimo Steven Erikson) é conseguir se manter no meio termo ideal, oferecendo as informações de maneira comedida, mas ainda assim envolvente.

Jardins da Lua é o primeiro livro de uma série de dez, intitulada “O Livro Malazano dos Caídos“. Ele é centrado no processo de expansão do Império Malazano, especificamente na tentativa de conquista das últimas duas grandes cidades livres: Pale e Darujhistan.

Fiel à forma dos livros do gênero, Jardins da Lua apresenta uma gama tão ampla de personagens que torna útil o índice de nomes que o abre. O início da história destaca três tramas específicas: a do soldado Paran, um jovem que sempre sonhou com a carreira militar; a do sargento Whiskeyjack, comandante do regimento denominado “The Bridgeburners”; e a da maga Tattersail, que busca vingança pela morte de seu amante, Calot.

É provável que o leitor se encontre um pouco perdido ao começar a leitura. O universo descrito por Erikson é complexo e consideravelmente vasto, comportando inúmeras criaturas, povos, deuses e raças distintas, e o autor parece se recusar a oferecer a explicação de suas características. Poucos personagens se lembrarão de eventos passados somente para contextualizar o leitor. Aqui, tais informações apenas são transmitidas quando o autor consegue empregá-las de maneira orgânica na narrativa. Em outras palavras, o que move a exposição não é a necessidade da mesma, mas a sua inevitabilidade. Seguindo esse princípio, Erikson consegue transformá-la em um bem valioso, tornando recompensador o momento em que o leitor compreende até mesmo as pequenas nuances dos eventos que estão transcorrendo.

Em Jardins da Lua, deuses ocupam um espaço significativo da história, interferindo com os afazeres humanos de forma direta, manipulando, possuindo e até mesmo assassinando pessoas. Eles constituem elementos imprevisíveis da narrativa: o leitor poderá compreender suas motivações, mas jamais seus planos. É inspecionando a cena de um massacre promovido por um dos deuses inimigos do Império, Shadowthrone, que o jovem Paran é recrutado pelo braço direito da Imperatriz Laseen, a Adjunta Lorn. Sua missão é perseguir uma garota – suspeita de estar sendo usada como receptáculo de Shadowthrone – enquanto se torna capitão do regimento de Whiskeyjack.

Enquanto isso, o sargento precisa se preocupar com o bem estar de seu próprio esquadrão, após um desastre que eliminou mais da metade de seus soldados. Whiskeyjack é um velho companheiro do líder militar do Império, Dujek, e ambos participaram ativamente da tomada do trono pela Imperatriz Laseen, embora defendendo o lado perdedor. Desse modo, temendo que a paranoia crescente da Imperatriz sobre os aliados do antigo Imperador acabe lhe custando a vida, o sargento precisa elaborar um plano que garanta a sobrevivência de seu regimento, enquanto é estrategicamente designado a colaborar na tomada das cidades de Pale e Darujhistan.

O cerco à Pale, a primeira grande batalha do livro, tem o propósito de acostumar o leitor a algumas características da história, como a magia e a violência. A única força impedindo a queda da cidade é uma misteriosa montanha flutuante, denominada “Moon’s Spawn”. A montanha é supostamente o habitat de seres anciões, os Tiste Andii, e ninguém sabe ao certo a razão de ela estar protegendo Pale. Aparentemente cansada de esperar respostas, a Imperatriz Laseen ordena que o feiticeiro Tayschreen ataque a montanha e leve consigo um grupo de usuários de magia consideravelmente experiente, composto, além de Tattersail e Calot, por aliados do antigo Imperador. O lorde de Moon’s Spawn então surge e dá início à batalha. A magia é um fator crucial no universo criado por Erikson e ela é introduzida em Jardins da Lua de forma chocante: na luta contra os habitantes da montanha, ondas de fogo e energia desintegram e queimam centenas de soldados em meros segundos, mutilam os corpos de magos e destroem tudo que tocam. Erikson faz o leitor temer a magia ao inflar seu impacto, constantemente colocando-a responsável por uma violência descomunal.

Na outra ponta do espectro, as pessoas comuns são relegadas a uma menção ou outra, que servem apenas para mostrar o quão dizimadas, famintas, condenadas e desesperadas elas estão. O autor almeja contar uma história de proporções épicas e, por esse motivo, nesse primeiro volume, prefere tratar a população como um mero, embora lamentável, efeito colateral dos grandes planos e feitos dos personagens que importam.

E quantos personagens são. Quando a narrativa desloca-se para a cidade de Darujhistan, mais uma dezena deles aparece, acrescentando suas motivações à já complicada teia de conspirações existentes. Entre eles, três se destacam: os amigos Crokus, Rallick Nom e Kruppe.

Crokus é um ladrão de rua que se apaixona perdidamente pela filha de um nobre que assaltava. Ele é um jovem ingênuo que, alheio à real importância de sua ações, torna-se uma peça fundamental para os planos de seres muito poderosos. Rallick Nom, por sua vez, é um assassino que pretende recuperar o patrimônio que seu amigo Coll perdeu de forma desonesta para uma mulher e decide montar uma armadilha durante uma festa organizada por ela. Já Kruppe é um personagem enigmático, uma vez que sua aparência inofensiva, seus hábitos alimentares grotescos e sua forma embolada de falar contrastam com a sabedoria de suas reflexões e a gravidade de seus sonhos que, por conterem conversas com deuses há muito esquecidos e tratarem de assuntos extremamente relevantes, sugerem um indivíduo bem menos tolo do que ele aparenta ser.

Kruppe, aliás, é o grande responsável pelo charme do livro, o que se deve, principalmente, ao seu modo de falar característico. Com o intuito de confundir seu interlocutor, ele costuma usar termos vagos e construir de forma confusa suas sentenças, referindo a si mesmo na 3ª pessoa para transmitir ingenuidade. Observem o efeito sutil do aparente erro da numeração em sua resposta, quando questionado sobre a saúde de Coll: “Twas healed magically, Sulty said. By some stranger, yet. Coll himself was brought in by yet a second stranger, who found a third stranger, who in turn brought in a fifth stranger in the company of the stranger who healed Coll. And so it goes, friend Murillio. Strange doings indeed” / tal erro foi, infelizmente, removido na edição brasileira. Agora, reparem novamente no desígnio de confundir seu amigo, quando também questionado por ele sobre o motivo de ir à festa organizada pela ex-mulher de Coll, já que sequer a conhecia: “Not relevant to Kruppe’s argument, friend Murillio. Kruppe has been acquainted with Simtal’s existence for many years. Such association is made better, nay, pristine, for the fact that she has not met Kruppe, nor Kruppe her” / “Isso não é relevante para o argumento de Kruppe, amigo Murillio. Kruppe é familiarizado com a existência de Simtal há muitos anos. Tal associação se torna perfeita, , ou melhor, mais imaculada, pelo fato de que ela não conhece Kruppe nem Kruppe a conhece”. Kruppe é o personagem mais intrigante do livro e ainda prova que, como qualquer bom autor, Erikson consegue, por intermédio da linguagem, direcionar a atenção do leitor para onde ele bem entender, manipulando-o da forma mais honesta possível.

Além disso, Erikson também se mostra um autor consideravelmente habilidoso no campo da preparação de terreno. Ele posiciona centenas de indícios sobre eventos importantes ao longo da narrativa, seja de forma brusca – o que prenuncia a morte de Calot tem um efeito atordoante –, seja de modo sutil – a máscara que o tio de Crokus veste durante a festa de Simtal adiciona até mesmo um toque de humor negro a seu destino –, criando um jogo de pista e recompensa divertidíssimo, que premia o leitor mais atento com um enredo mais complexo e gratificante.

O grande mérito da narrativa de Jardins da Lua no entanto, é a tensão criada pelos crescentes conflitos entre as motivações de cada personagem. Aproveitando-se de um conceito trabalhado dentro da própria história – uma espécie de convergência de poder – Erikson estrutura o clímax do meio e do fim do livro de forma a englobar a resolução de diversas tramas em um único cenário. O caos gerado é minuciosamente orquestrado por ele, ocasionando cenas que entretêm devido a sua imprevisibilidade e empolgam pela mesma razão.

Entretanto, por mais que o autor tenha mostrado saber conduzir de forma complexa mais de dez tramas distintas, volta e meia ele tropeça em alguma. A mais problemática concerne o feiticeiro Hairlock, colega de Tattersail, que, após sentir seu corpo ser destruído no embate contra Moon’s Spawn, tem sua alma transferida para uma marionete. Hairlock passa, então, a vaguear pelos caminhos do caos para desvendar os planos de seus inimigos, mas acaba enlouquecendo no processo. O arco do personagem é consideravelmente intenso no início do livro, o que torna decepcionante a forma anticlimática com que termina, uma vez que nunca chega realmente a interferir no cenário que deveria. A maga Tattersail e o deus Shadowthrone também são jogados para escanteio na metade da história, impactando negativamente a narrativa.

Já a prosa de Erikson é acertadamente rebuscada, sendo possível perceber que cada palavra foi meticulosamente escolhida. Os poemas que abrem cada capítulo servem como um ótimo exemplo, contendo termos que exercem dupla função: refletem o tema que do capítulo e desenvolvem outros que só serão compreendidos mais adiante, servindo como foreshadowing. Esses temas seguem a cartilha do gênero, que se utiliza de situações fantásticas para discutir questões universais e chegam a ser ponderados de forma direta pelos personagens.  O momento em que o capitão Paran reflete sobre deuses e homens, por exemplo, é particularmente inspirado ao negar a relativização moral por diferença entre culturas (“Morality was not relative, they claimed, nor even existing solely in the realm of the human condition. No, they proclaimed morality as an imperative of all life, a natural law that was neither the brutal acts of beasts nor the lofty ambitions of humanity, but something other, something unassailable” / “A moralidade não era relativa, alegavam, nem existia somente no reino da condição humana. Não, eles proclamavam que a moralidade era uma imposição a todas as formas de vida, uma lei natural que não era nem os atos brutais das feras nem as ambições soberbas da humanidade, mas algo diferente, algo inexpugnável”). O autor, porém, se agarra a alguns maneirismos que incomodam com o tempo: a quantidade de personagens que franzem a testa e levantam a sobrancelha a cada notícia ou diálogo, por exemplo, ultrapassa em muito o limite do aceitável, embora não chegue a atrapalhar demasiadamente a leitura.

Jardins da Lua é um excelente exemplo de como se escrever literatura fantástica. O autor constrói uma narrativa complexa, torna a exposição do universo gratificante, cria uma gama gigantesca de personagens únicos, discute assuntos importantes e conta diversas histórias que empolgam pelo modo com que se conectam e concluem. Apesar disso, o que mais salta aos olhos durante a leitura é o fato de que o livro, indo na contramão da indústria, tem plena fé na capacidade do leitor e, além de não subestimar sua inteligência, ainda estimula seu raciocínio.

por Rodrigo Lopes C. O. de Azevedo.

Publicado originalmente em 22 de maio de 2014.

Editado em 21 de abril de 2017 para incluir as citações da edição brasileira.

———– > Leia também as críticas das continuações: Deadhouse Gates/Os portas da Casa dos Mortos , Memories of Ice/Memórias de Gelo , House of Chains/Casa de Correntes e Midnight Tides/Marés da Meia-noite.

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Edição Brasileira:

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Edição em Inglês:

. Amazon Brasil;

. Saraiva;

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Rodrigo Lopes C. O. de Azevedo


2 Comments


  1.  
    Hoxton

    Pela crítica da a impressão que os deuses são literalmente Deus Ex Machina. Vou comprar esse livro pra checar.




    •  
      Rodrigo Lopes C. O. de Azevedo

      Pelo contrário, os deuses sim interferem pesadamente na trama, mas tal interferência é devidamente preparada pelo autor. Um deus ex machina é justamente caracterizado pela falta de preparação: a ajuda sai do breu, do nada. Abraços e boa leitura!





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