Heresia.
Sumário
Genero: F. Histórica, SuspenseHeresia é, sem qualquer polêmica, um suspense histórico com um pano de fundo espetacular e bastante complexo. Seu problema foi justamente conciliar todas as tramas que ele se propôs a tratar, o que resultou em uma história com problemas severos de foco e ritmo.
Giordano Bruno, protagonista de Heresia, frade e filósofo, foi perseguido pela Inquisição no final do século XVI por pregar a infinidade do universo e o modelo heliocêntrico de seu funcionamento, sendo precursor até mesmo do famoso Galileu. Dizem que sua última fala quando finalmente capturado pela Inquisição em 1600, no momento em que o condenaram à morte por heresia, foi “Os senhores proclamam essa sentença com mais medo do que eu a recebo”. Sua história, bem documentada, serviu de base para a confecção de um suspense que, por mais que possua um pano histórico demasiadamente interessante, falha em harmonizar os elementos que caracterizam suas diversas tramas.
A história de Heresia se passa em um momento bastante específico da vida de Giordano Bruno, contando sobre a sua viagem em 1583 para Oxford, com o pretexto de participar em um debate sobre as teorias de Copérnico. Com base nesse evento, a autora S. J. Parris – o pseudônimo da jornalista inglesa Stephanie Merritt – usa como principal argumento para a narrativa do livro o fato de os verdadeiros propósitos do frade serem outros: a procura de um manuscrito perdido do sacerdote egípcio, Hermes Trismegisto, e a espionagem para o serviço de inteligência inglês, buscando católicos que pudessem estar tramando contra a protestante rainha Elizabeth. Contudo, ao chegar a Oxford, Giordano se vê preso em uma teia de assassinatos misteriosos que sente a urgência de solucionar.
Por essa breve sinopse já é possível constatar a enorme quantidade de objetivos que o protagonista tem que alcançar e, consequentemente, o grande número de subtramas que eles abrem. Amarrar todas essas histórias provavelmente foi o maior desafio que a autora teve que enfrentar, e, infelizmente, é exatamente esse o ponto em que o livro mais peca: aderir às características que todas essas subtramas clamam.
Uma trama de assassinato, por exemplo, costuma começar com o mesmo por motivos óbvios: com esse recurso o escritor almeja apresentar ao leitor o tipo de história que vai contar e captar de imediato a sua atenção em uma só jogada. No entanto, como decidiu minuciar bastante o pano de fundo histórico – algumas referências são um tanto desnecessárias, como a presença alardeada do príncipe polonês na viagem à Oxford – Merrit empurra seu primeiro assassinato por aproximadamente setenta páginas. Desse modo, quando ele finalmente acontece, a noção de que a história está prestes a se tornar um mistério policial, estilo Sherlock Holmes, causa uma surpresa desconfortável ao leitor desprevenido e irritação a aquele que tiver pesquisado sobre o livro, já que aparentemente ele perdeu uma hora da sua vida com outro estilo de história.
Acontece que os assassinatos também não se tornam o principal ponto de Heresia. Enquanto Giordano os investiga – mais por curiosidade mórbida e falta do que fazer em Oxford do que por qualquer motivo em especial – o livro gasta igual tempo na busca pelo manuscrito de Hermes e no fomento das teorias conspiratórias dentro da faculdade inglesa (“Nenhum homem em Oxford é o que aparenta ser”). E como a junção das tramas raramente é realizada de uma forma mais sofisticada do que lançar o protagonista de uma para a outra por coincidências aleatoriamente posicionadas na narrativa, essa falta de foco do livro traz consequências negativas para seu ritmo, uma vez que a atenção do leitor fica sendo constantemente desviada para diversos objetivos distintos, o impedindo de se importar verdadeiramente com qualquer um deles.
A autora acerta, no entanto, na elaboração da atmosfera do livro, que é sempre instigante, claustrofóbica e atrelada à sensação de suspense, mesmo que para isso use truques velhos e básicos, como a presença interminável de chuva e neblina. Já seu estilo de escrita não é nem de perto rebuscado o suficiente como a época em que o livro se passa poderia sugerir que fosse, preferindo aderir um tom bastante simplista e objetivo nas descrições e diálogos – uma escolha que embora não prejudique o livro, também não faz nenhum favor a ele.
Quanto aos personagens de Heresia, os secundários dificilmente podem ser classificados como memoráveis, basicamente se dividindo em dois grupos: as caricaturas típicas de histórias de suspense que aparentam ser bem menos do que realmente são, como 90% dos professores de Oxford, e as que servem de muleta, seja para as ações do protagonista, como Philip Sidney, ou para a movimentação da trama, como o livreiro Jenkins. O único deles que realmente se destaca, além daquele que poderia ser considerado o “vilão”, é o reitor da faculdade, John Underhill, uma vez que, ao sentir mais pesadamente todos os eventos ao longo do livro, demonstra um emocionante conflito entre sua personalidade frágil e a posição de poder que tanto precisa manter.
Já concernindo o protagonista, Merritt peca ao não fazer jus ao potencial que ele apresentava. Giordano Bruno foi um teólogo famoso por suas teorias sobre o funcionamento do universo, se limitando principalmente a dois pontos basilares: o de que a terra não seria o centro de nossa galáxia, mas o sol, e que o universo seria infinito, contendo infinitos planetas, sóis e galáxias, muitas possivelmente habitadas. Entretanto, Giordano personagem de Heresia mal toca nesses assuntos. Com o livro sendo narrado em primeira pessoa, a autora se deu um instrumento perfeito para construir reflexões sobre essas teorias e como o personagem chegou até elas, mas praticamente nada é aprofundado. Até mesmo no debate com o reitor de Oxford, tão alardeado no início do livro, a autora prefere sair pela tangente com a desculpa de não querer aborrecer o leitor com dados inúteis.
Além disso, Merritt também perdeu a oportunidade de explorar uma das mais promissoras ironias presentes em sua história: o fato de o frade ser perseguido pela Inquisição e, ao mesmo tempo, assumir o papel de delator que levará pessoas a serem condenadas à morte por suas convicções religiosas. Essa gritante contradição poderia ter gerado um conflito interno interessantíssimo no personagem, mas é apenas limitada a uma ligeira menção no final do livro. Todas essas oportunidades desperdiçadas, portanto, acabam inevitavelmente sabotando o que poderia justamente destacar Giordano de outros protagonistas rasos de livros similares.
Merritt, todavia, se sai melhor na exploração de outro artifício natural de uma narração em primeira pessoa: a ambiguidade. Por mais que a revelação da identidade do assassino passe longe de surpreender ou empolgar – indo na verdade no sentindo contrário, provando que os assassinatos não passaram de uma subtrama, uma distração, elaborada e demasiadamente demorada – o verdadeiro clímax do livro é eficiente em finalmente desenvolver tanto o antagonista quanto Giordano, ao entregar ao leitor apenas o ponto de vista do protagonista, lembrando-o de que o mesmo pode não ser verdade. Dessa forma, e devido às graves consequências das ações do frade, a autora abre possibilidades de interpretação grandes o suficiente para transformar Giordano em seu próprio algoz e verdadeiro vilão do livro.
É tanto o clímax de Heresia o instante em que a autora se sai melhor que é exatamente nele que ela consegue aplicar as críticas religiosas básicas (“A tolerância destruiria em 20 dias o que 20 anos de sofrimento só fizeram fortalecer”) que o livro inteiro poderia e deveria ter, já que além de trazer o contexto mais propício possível, elas ajudariam a enriquecer a narrativa falha, se bem posicionadas. O fim também constitui a maior prova de que é um fator positivo para o leitor conhecer de antemão a história de Giordano, já que as referencias à sua morte na fogueira são bem abundantes.
Heresia é, sem qualquer polêmica, um suspense histórico com um pano de fundo espetacular e bastante complexo. Seu problema foi justamente conciliar todas as tramas que ele se propôs a tratar, o que resultou em uma história com problemas severos de foco e ritmo. No entanto, seu final – que também resume a força das tramas, concluindo a de espionagem de forma exemplar, a dos assassinatos de forma tola e a da busca pelo livro de forma anticlimática – recobra a força da narrativa e consegue concluir o livro com o impacto que ele por inteiro deveria causar.
por Rodrigo Lopes C. O. de Azevedo.
Publicado originalmente em 10 de Janeiro de 2014.