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Lugar Nenhum.

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Posted 10/16/2016 by in Fantasia Urbana

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Nota:
 
 
 
 
 

3/ 5

Sumário

Genero:
 
Autor:
 
Editora:
 
Idioma Original:
 
Título: Lugar Nenhum.
 
Título Original: Neverwhere.
 
Tradução: Fábio Barreto.
 
Edição: 2016.
 
Páginas: 335.
 
Capa: Houston Trueblood / ô de casa.
 
Resumo:

Lugar Nenhum se configura um romance de fantasia urbana regular. Seu universo é interessante o suficiente para render continuações melhores, mas Gaiman precisa se livrar desse protagonista e criar uma história que explore melhor a fantasia apresentada.

by Rodrigo Lopes C. O. de Azevedo
Full Article

Lugar Nenhum é uma fantasia urbana, escrita por Neil Gaiman, que diverte com o bom humor da narrativa na mesma proporção com que irrita com a teimosia de seu protagonista. Trazendo uma história divertida, mas problemática, e um universo criativo, mas de apelo limitado, o romance passa longe de ser um dos melhores trabalhos do autor.

A trama de Lugar Nenhum acompanha Richard, um jovem inglês com uma vida pacata, que finge estar contente com seu emprego de escritório e com seu relacionamento abusivo. Certa noite, porém, ele se depara com uma misteriosa garota machucada na rua e decide ajudá-la, aos protestos de sua namorada, Jéssica. No dia seguinte, Richard percebe que ter prestado auxílio pode ter lhe custado muito caro: ninguém mais na cidade parece notar sua presença, ignorando-o solenemente.

O universo mágico apresentado no livro tem uma proposta clara: trabalhar com os elementos marginalizados na sociedade. A Londres de Baixo, como é chamada, é um submundo fantástico localizado nos esgotos da cidade real, povoado por mendigos e bruxas e facções comandadas por corvos e ratos. Tudo que é deixado de lado, ignorado ou menosprezado pelas pessoas, vai parar na Londres de Baixo.

Desse modo, é fascinante observar as características peculiares do lugar, como mercadores anunciarem objetos perdidos como itens de imenso valor (“Venham, venham, vejam com seus próprios olhos. Perdidos. Nada desses lixos achados por aí. Tudo devidamente perdido, podem confiar”) e cortes da realeza se organizarem nos vagões desligados do metrô.

Nesse cenário absurdo, o protagonista precisa reencontrar a garota que ajudou previamente, chamada Door, e descobrir por que há dois assassinos à procura dela.

A história de Lugar Nenhum acompanha a viagem de Richard pela Londres de Baixo, com ele se espantando com os elementos cada vez mais fantásticos com que se depara. Gaiman, entretanto, falha um pouco em explorar o tema do cenário na trama: a jornada do protagonista serve apenas como um tour pela Londres de Baixo, deixando de desenvolver suas características.

Tal problema pode ser observado na construção do vilão da história. Sem revelar sua identidade e plano, basta apontar que sua eventual vitória ou derrota em nada influencia aquele mundo fantástico, ligando-se, na verdade, a outros cenários e tipos de discussões.

Já os personagens de Lugar Nenhum variam entre os caricaturais (Jéssica deseja transformar Richard em um “acessório matrimonial perfeito”) e o clichês (Marquês de Carabás é o típico vigarista que não se pode confiar totalmente, pois não é possível conhecer suas verdadeiras intenções). Não é o caso de Gaiman não trabalhar bem com eles – o autor até cria graça com o nível de insanidade de Jéssica em sua solução para o problema de Richard ter ajudado Door –, mas ele jamais almeja conceber ninguém minimamente complexo ou surpreendente, o que é uma pena.

Quem se destaca entre os personagens é justamente a dupla de assassinos que persegue Door: o senhor Croup e o senhor Vandemar. Gaiman torna-os fascinantes por variar sua função narrativa constantemente, além de construir seus diálogos com humor negro, transformando a dupla em uma versão psicopata de “O Gordo e o Magro”. A graça de Sr. Croup e Sr. Vandemar advém da quebra de expectativa causada por suas personalidades doentias, que tratam a violência com a mais perfeita naturalidade, acolhendo-a com os braços abertos: “O sr. Vandemar tinha muito orgulho daquele lenço borrado de verde, marrom e preto que pertencera originalmente a um mercador de rapé bastante rotundo, nos idos de 1820. O sujeito morrera de apoplexia e fora enterrado com esse lenço no bolso. Volta e meia o sr. Vandemar encontrava no tecido fragmentos do mercador, mas afora isso, sabia que se tratava de um lenço de qualidade”.

O humor em Lugar Nenhum, porém, nem sempre funciona. O motivo é de fácil diagnóstico: Gaiman faz suas piadas muito específicas, brincando prioritariamente com Londres, e ainda as repete inúmeras vezes. As piadas advêm, normalmente, do choque que Richard sofre com a subversão de seu mundo. Estações do metrô, prédios e pontes não correspondem com o que ele sabe “ser a verdade”. No entanto, essas piadas, além de funcionarem mais para um morador da cidade, repetem-se até o final da narrativa, levando o leitor a se perguntar como Richard continua se chocando com as coisas, depois de tudo que presencia.

Richard, aliás, configura-se o principal problema do livro. Ele não funciona com o humor, porque as piadas que o envolvem jamais evoluem: na primeira vez em que questiona que tal coisa deveria ou não existir, ele leva uma resposta cínica de seus companheiros e o leitor ri de sua confusão. Na décima sétima vez que Richard bate o pé no chão e afirma categoricamente que algo não corresponde com seu conhecimento prévio de mundo e, portanto, está errado, o leitor só pode se maravilhar com a paciência dos companheiros do rapaz, que continuam com respostas irônicas em vez de mandá-lo simplesmente aceitar que não é mais o dono da verdade e calar a boca.

Richard  não funciona como avatar do leitor na narrativa, pois se mostra incrivelmente estúpido em sua demora em aceitar que o fantástico existe. Não basta a população de Londres o ignorar, ele ver pessoas se teletransportarem, atravessando portais invisíveis, e uma fumaça negra formada por pesadelos comer gente na sua frente. Se alguém lhe avisa para tomar cuidado com o que existe no vão entre o trem e a plataforma do metrô – uma das poucas piadas gerais do livro –, Richard obviamente ignora o alerta porque sabe não haver nada de perigoso lá.

Richard não funciona como personagem. Ele não tem personalidade, revelando nenhuma aspiração, qualidade, amor ou trejeitos próprios. Em certo momento, o personagem reflete que odeia pessoas que reafirmam o óbvio; bem Richard deve ser seu pior inimigo, uma vez que a maior parte de seus diálogos é constituída por frases similares em formato de pergunta (“Você não vai abrir isso?”) com os restantes sendo constatações errôneas sobre como o universo funciona (“Não existe uma estação Museu Britânico”).

Richard, não é de se espantar, funciona muito menos como protagonista. Ele age passivamente diante da maior parte dos acontecimentos da história, realizando seu primeiro ato importante depois de salvar Door somente após dois terços do livro. Richard apenas acompanha a garota em sua investigação e aponta exaustivamente para as coisas que estão fora do lugar em relação a sua realidade. O rapaz sequer age no clímax, tornando ainda mais questionável sua presença na história: ele só faz três coisas o romance inteiro e a última certamente poderia ter sido realizada por qualquer outro ser humano com dois braços e duas pernas que estivesse na mesma posição que ele.

Por fim, é válido notar que Gaiman mostra-se mais contido que o habitual ao trabalhar com simbolismos, o único destaque sendo a cena em que uma misteriosa senhora, no início do livro, profetiza sobre o futuro de Richard. Quando deixa o rapaz, a mulher abre um guarda-chuva com o desenho do mapa do metrô de Londres, que se estende por cima dela: o elemento místico permanece embaixo da cidade, refletindo o nome de sua contraparte fantasiosa.

Esta edição de Lugar Nenhum, publicada pela editora Intrínseca, é a segunda tradução do livro no Brasil. A primeira, feita por Juliana Lemos, foi publicada em 2007 pela Conrad. O novo trabalho de Fábio Barreto revela uma preocupação com o tom dos termos empregados que, em grande parte, prezam pela seriedade: se no texto de Lemos, Richard fazia “sexo”, agora ele “faz amor”. “Chefe” virou “Cliente”, “Olha” virou “Pois não”, “Com mil demônios” virou “Raios e trovões”. Essa mudança no tom do texto é bem perceptível, mas não necessariamente melhor para o romance. Na verdade, a maior vulgaridade da tradução de Lemos casava mais com a despretensão da narrativa – sem contar que sua solução para a piada dos barbantes (que ela transformou em cubos) é bem mais engenhosa que a de Barreto. No entanto, esta edição traz, no final, o conto Como o marquês recuperou seu casaco, antes apenas disponível na coletânea O Príncipe de Westeros e outras histórias.

Lugar Nenhum se configura um romance de fantasia urbana regular. Seu universo é interessante o suficiente para render continuações melhores, mas Gaiman precisa se livrar desse protagonista e criar uma história que explore melhor a fantasia apresentada.

por Rodrigo Lopes C. O. de Azevedo.

16 de outubro de 2016.


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Rodrigo Lopes C. O. de Azevedo


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