O Circo Mecânico Tresaulti.
Sumário
Genero: SteampunkApesar de ser o romance de estreia de uma jovem autora, O Circo Mecânico Tresaulti é um livro ousado. Genevieve Valentine constrói uma estrutura narrativa complexa e inventiva que incrementa sua história e a torna única. Os deslizes que ocasionalmente comete não comprometem a leitura e, no fim, o livro permanece sendo um experimento bem sucedido.
O Circo Mecânico Tresaulti, o primeiro romance de Genevieve Valentine, marca de modo promissor o ingresso da autora, que até então apenas se dedicava a contos, nesse campo da literatura. É um livro diferente e ambicioso, cujo principal elemento é a narrativa: para Valentine, o mais importante é como o formato de sua história a afeta e complementa.
O Circo Mecânico Tresaulti recebe esse nome porque é integrado por indivíduos extraordinários: pessoas que tiveram diversas partes de seu corpo – como a perna, o coração ou os olhos – substituídas por engrenagens, sucata e utensílios de metal. Essas peças são montadas pela diretora do circo – a quem todos se referem apenas como Boss – especificamente para serem mais resistentes que os músculos originais, facilitando o trabalho da trupe. O processo é absurdamente doloroso e, ao seu término, não é somente o aspecto físico da pessoa que acaba modificado. O que Boss usa em seu trabalho, entretanto, não é nenhuma ciência conhecida, mas algo bem mais dispendioso, que enjaula a alma de seus subordinados e os torna praticamente imortais.
A história possui três focos distintos: a jornada de amadurecimento do jovem protagonista George, a dinâmica entre o restante dos integrantes do circo e a ameaça proporcionada pelo “Homem do Governo”, que pretende copiar o dom de Boss.
A narração em primeira pessoa, comumente utilizada em romances de formação, está apropriadamente presente nos capítulos de George. O menino observa o circo com um inocente fascínio, maravilhado com suas peculiaridades, sem perceber os horrores que o levaram a existir – o trabalho de Boss, por exemplo, ao invés de assustá-lo, atiça sua curiosidade. A perspectiva em primeira pessoa serve para aproximar o leitor, fazendo-o compartilhar das mesmas ideias.
Quando Valentine comenta sobre o circo, ela se dirige diretamente ao leitor, com o objetivo de apresentá-lo aos números como se estivesse lá – e não é a toa que o marcador de página que acompanha o livro é um convite. O narrador conversa com o leitor, acompanhando-o pelas tendas e posicionando-o corretamente na plateia, guiando seu olhar e mostrando exatamente o que ele quer que seja observado. Valentine não deseja que o leitor seja um observador passivo, mas que saiba que o circo está ciente de sua presença e, dessa forma, que se sinta desconfortável.
Boss é uma personagem complexa, tratada por seus empregados quase como uma deusa onisciente: ela os criou, diz o que é certo e errado e está sempre os observando. O desconforto causado pela aproximação que o texto faz do leitor o estimula a compreender que, por mais que George ame o ambiente circense e sonhe participar dele pelo resto de sua vida, há algo muito errado acontecendo atrás das cortinas.
Já ao comentar sobre os conflitos internos do circo e sobre a trama envolvendo o Homem do Governo, Valentine usa um narrador onisciente em terceira pessoa, já que a trupe é formada por indivíduos bem exóticos que nem sempre mantém uma relação harmoniosa entre si.
Os personagens que melhor exemplificam esse aspecto são Bird e Stenos. Bird é uma garota que, pouco tempo depois de ser aceita no circo, caiu do trapézio e machucou-se gravemente. Boss a consertou – um de seus olhos se tornou de vidro – e a colocou em outro número, que executaria junto com Stenos – um ladrão que, vendo no circo uma fonte de alimento mais confiável que seus assaltos, decidiu integrá-lo. Apesar de treinarem juntos todos os dias e realizarem o número em sintonia, eles se odeiam por cobiçarem a mesma coisa: um par de asas mecânicas. As asas criadas por Boss são a fruta proibida do circo e seu melhor símbolo. Um dia elas foram posse de Alec – um homem gentil, querido por Boss e por toda a trupe, que terminava o espetáculo voando por cima da plateia – até desabar no ar durante uma apresentação e morrer com o impacto. Elas representam a dicotomia do circo: de um lado encantam – as penas produzem notas musicais quando balançadas pelo vento –, mas de outro lembram a maior tragédia que abateu o lugar.
O narrador onisciente é usado para tecer comentários cínicos acerca dos verdadeiros sentimentos dos personagens. Nesse ponto, Valentine não é nem um pouco sutil, colocando essas observações entre parênteses por todo o texto, ora negando as intenções declaradas por seus personagens, logo após serem feitas, ora revelando o erro de suas ações, apontando para os defeitos em seus planos. Contudo, apesar de óbvio, esse estilo é inegavelmente eficiente em levar o leitor para um universo cruel e impiedoso.
O cenário em que a história de O Circo Mecânico Tresaulti transcorre chega a ser tão inóspito e terrível que as pessoas preferem sujeitar-se a ser transformadas em marionetes de um misterioso circo a continuar com suas vidas normais. Quando Boss alerta sobre o risco de morte durante o processo de mecanização, eles sentem até mesmo alívio – como um dos personagens pensa na hora: seria “menos uma coisa para se preocupar”.
As cidades que visitam – sempre em ruínas – não têm nome. Aqueles que não integram o circo são tratados apenas por sua posição na sociedade – geralmente sua profissão – e deixados de lado pela narrativa rapidamente. Todos os personagens estão sempre refletindo sobre a fragilidade de suas vidas e a constante opressão a que são submetidos.
A arte deixou de existir: não há mais teatros, cinemas ou qualquer palco, apenas o Circo Mecânico Tresaulti. O Homem do Governo, principal antagonista no livro, deseja trazê-la de volta ao mundo, mas reconstruí-lo segundo seus princípios. O Homem do Governo diz que os membros do circo são soldados e que seus dons constituem a chave para a realização de seu sonho. Boss se apavora com esse prospecto e diz que os membros do circo são, antes de tudo, artistas. Desse modo, nos momentos em que a narrativa culmina em batalhas e confrontos armados, o tom é raramente empolgante, mas triste e melancólico.
A história, em sua maior parte, é contada no presente. Em algumas ocasiões essa escolha é justificável – nos instantes, por exemplo, em que estão sendo explicados os hábitos do circo (“Boss sempre diz ao aldeões que foi seu falecido marido que nos fez”), ou nos momentos em que há um diálogo com o leitor (“Você sai rapidamente quando os trapezistas já terminaram”). Porém, em outras ocasiões, ela é inapropriada, fazendo com que o estranhamento resultante soe forçado (“Quando faz treze anos, Boss mostra a Ying a oficina e explica o que irá acontecer com seus ossos”), uma vez que, como a ação descrita aconteceu no passado, o pretérito perfeito se mostraria mais adequado. No entanto, a sensação de passagem de tempo é deturpada no circo, principalmente para o protagonista – que nunca acha ter vivido lá por muito tempo – e talvez tenha sido essa a razão da autora transitar entre os tempos verbais: causar no leitor a mesma desorientação dos personagens.
Além disso, o livro volta constantemente a narrar fatos já conhecidos, como a morte de Alec, sob pontos de vista diferentes. Essa estrutura se relaciona ao processo de aprendizagem do protagonista, que aos poucos começa a notar as nuances das relações ao seu redor.
Apesar de ser o romance de estreia de uma jovem autora, O Circo Mecânico Tresaulti é um livro ousado. Genevieve Valentine constrói uma estrutura narrativa complexa e inventiva que incrementa sua história e a torna única. Os deslizes que ocasionalmente comete não comprometem a leitura e, no fim, o livro permanece sendo um experimento bem sucedido.
por Rodrigo Lopes C. O. de Azevedo.
Publicado originalmente em 01 de setembro de 2014.