O demonologista.
Sumário
Genero: TerrorApesar de suas ambições, O demonologista é um livro superficial e profundamente falho: ele até contém uma parcela de cenas empolgantes, mas a incapacidade do autor de montar uma narrativa coesa e coerente resulta em uma história precária incapaz de se sustentar.
O demonologista, escrito por Andrew Pyper, busca mesclar cenas de terror com uma estrutura típica de um thriller, enquanto constrói uma alegoria sobre depressão. O romance contém uma parcela de cenas empolgantes, mas a incapacidade do autor de montar uma narrativa coesa e coerente resulta em uma história precária incapaz de se sustentar.
O demonologista é divido em três atos. O primeiro apresenta os personagens e expõe o conflito central da trama, o segundo é composto por uma viagem que o protagonista faz pelos Estados Unidos e o último contém o clímax da história.
O protagonista do livro chama-se David Ullman, um professor universitário especializado na obra mais famosa do poeta inglês John Milton: o poema épico Paraíso Perdido. O casamento de Ullman está em ruínas, seu emprego não traz a mesma satisfação que antes e sua melhor amiga acaba de descobrir que está com câncer terminal. Para fugir momentaneamente de sua vida, portanto, ele aceita a misteriosa oferta de uma mulher que o interpela no trabalho. O professor, então, mesmo desconhecendo a natureza da tarefa para qual foi contratado, viaja para Veneza levando consigo sua filha Tess.
Na cidade, o protagonista é testemunha de um caso de possessão demoníaca, que consegue gravar com uma filmadora, e, quando volta para o hotel, vê sua filha – que, como ele, sofre de depressão – cometer suicídio, jogando-se da cobertura. Ullman, entretanto, acredita que sua filha não morreu, mas que foi sequestrada pelo demônio, e parte em busca de respostas para conseguir reavê-la.
A depressão é a espinha dorsal de O demonologista. Os eventos que formam a narrativa desempenham um papel alegórico quanto à doença que o protagonista sofre: as cenas de terror representam a força invisível e incompreensível que empurra o indivíduo a ações autodestrutivas, alimentando sua dor, enquanto estende seu domínio sobre ele.
A dinâmica que o demônio mantém com Ullman é um espelho de sua doença: o faz afastar-se de seus amigos, isolar-se do mundo, e ainda induz um comportamento neurótico e suicida, enquanto guia o professor para mais perto de suas garras. O dilema do clímax, por exemplo, é se Ullman irá se entregar ao demônio – o que levaria a sua morte – ou se conseguirá resistir a sua influência. Desse modo, essa relação constitui uma base excelente para uma história de terror – o que Pyper, infelizmente, não consegue aproveitar.
Primeiramente, o autor confunde depressão com estupidez, fazendo com que o protagonista realize ações completamente insanas com o fim de motivar cenas de tensão. Em determinado momento, por exemplo, Ullman está viajando de carro, fugindo de um demônio que pode assumir o corpo de outras pessoas, e decide dar carona para uma menina estranha na estrada, garota esta que ele observou ter mudado de rosto segundos antes. Tal decisão é governada por nada que não mera tolice. A situação não representa o estado psicológico de Ullman de nenhuma forma: não é o caso de ele reconhecer o perigo e ainda assim desejá-lo, de ser atraído pela situação por forças que não consegue compreender, ou algo nessas linhas. Não, ele simplesmente acha que oferecer a carona é uma boa ideia e ainda fica surpreso por a garota se revelar o demônio.
O livro é inteiramente formado por situações parecidas, levando o leitor a acreditar que a visão que Pyper tem da doença é superficial e tola, principalmente por se consistir em uma alegoria repetida à exaustão: uma vez que ela antecede praticamente todas as cenas de terror na narrativa, a estrutura narrativa resultante leva à conclusão de que a história não tem mais nada a dizer sobre o assunto.
Essa conclusão é reforçada pelo fato de Pyper não trabalhar com a doença pela perspectiva de Ullman. O demonologista é narrado em primeira pessoa, o que poderia fazer o leitor entrar na mente do personagem e ser cercado por uma atmosfera pesada, claustrofóbica e desprovida de esperança. Porém, o professor raramente pensa como um depressivo, não sendo raras as situações em que ele até revela possuir uma perspectiva bem otimista quanto a seu objetivo. Seus momentos de tristeza estão sempre ligados às tragédias de sua vida: ele sofre porque sua filha morreu e porque sua amiga terá o mesmo fim. Ele não tem recaídas sem motivação e, mesmo aquelas relacionadas com suas perdas, são breves ou pouco avassaladoras. Em suma, Pyper pouca explora a doença do personagem, preferindo tratá-la apenas por meio das referidas alegorias.
É certo que, logo no início do segundo ato, o professor tenta se matar, ingerindo remédios, mas este é o único capítulo do livro em que Ullman está imerso em pensamentos autodepreciativos e destrutivos. No restante da história, sua mente está em outros lugares, sua autorreflexão é superficial – o que o autor tenta esconder ao recheá-la com advérbios (“Quão terrível e inabalavelmente assustado estou”) – e sua voz na narrativa não traz a angústia que deveria.
Afinal, Ullman é, na verdade, marcado por sua obsessão em encontrar a filha e em seguir as pistas reveladas pelo demônio. É esse traço, e não sua depressão, que mais interfere nos eventos da narrativa e que pode ser observado em suas ações e diálogos. Nem seu ceticismo inicial é suficientemente trabalhado, visto que o personagem, por motivos óbvios, passa a acreditar no Diabo assim que observa o caso de possessão em Veneza. E se, em determinada cena, ele confessa que ainda não acredita em Deus, tal informação não chega a servir propósito algum, visto que esta crença não interessa muito ao demônio. Ullman revela-se, portanto, um personagem raso, bem semelhante a aqueles que protagonizam as obras de Dan Brown (O Código Da Vinci).
Livros dos quais O demonologista copia a fórmula estrutural em boa parte de seu segundo ato. Após a queda de sua filha, o professor começa a decifrar pistas deixadas pelo demônio com esperança de que, de alguma forma, a encontrará no final da trilha. Com isso, boa parte do livro é formada pelo personagem correndo de um lado para o outro, de maneira similar ao que ocorre em thrillers como Anjos e Demônios. Pyper, no entanto, não apresenta a mesma habilidade de Dan Brown em preparar os elementos dessa busca. Em umas das primeiras cenas do segundo ato, por exemplo, o demônio possui um taxista e leva Ullman até o norte de um edifício chamado Dakota. O professor, então, em um momento de brilhantismo fora do comum, deduz que isso significa que ele deve viajar para Dakota do Norte. Enquanto nas obras de Dan Brown as deduções do protagonista são relacionadas a teorias da conspiração e normalmente envolvem um mínimo de pesquisa para exemplificar o conhecimento do personagem, em O demonologista as conclusões de Ullman são simplesmente boçais.
É, portanto, sintomático que a especialidade de Ullman sobre Paraíso Perdido seja quase irrelevante para a narrativa. Pyper mostra-se incapaz de trabalhar com a obra de Milton, limitando-se a fazer o demônio falar com citações e, o professor, a analisá-las superficialmente. Não é a toa que, no instante em que o demônio exige um pouco mais de interpretação – mesmo que esta tenha caráter pessoal e não envolva uma análise da obra – o personagem apresenta dificuldades em realizar a tarefa: “Explico como, inicialmente, também não havia entendido. Não havia palavra que saltasse aos olhos como destino, nenhuma cidade ou estado velados pela poesia”.
O autor, todavia, definitivamente se sai melhor na construção das cenas de terror. Pyper monta os cenários com elementos típicos do gênero, mas narra fornecendo as informações gradativamente, sabendo que manter o leitor no escuro é eficaz na construção da tensão. A cena que transcorre em um porão na metade do livro é um bom exemplo. Nela, o protagonista está tentando obter informações de Delia Reyes, uma senhora que perdeu a irmã para o demônio semanas antes. Irmã esta que conversou com Ullman quando ele entrou na casa. Delia encontra-se imersa na escuridão do porão. A descrição do lugar exibe possíveis armas, indicando o perigo que ele está correndo: “Quando meus pés chegam ao chão, consigo observar alguns dos detalhes que a luz proporciona. Mesas de carpintaria contra as paredes, entulhadas de ferramentas, tesouras de podar, potes de conserva cheios de porcas e parafusos”. Há somente duas lâmpadas iluminando parcamente o local e elas ainda revezam em parar de funcionar. O diálogo com Delia, então, vai paulatinamente armando o palco para o clímax da cena, revelando a Ullman as intenções do demônio e mostrando o resultado de sua influência.
Assim, é uma pena que tais momentos sejam precedidos de decisões absurdas (como descer até o porão) e de trechos risíveis como: “O que passou pela minha cabeça, ao confiar em uma senhora idosa suja de terra e sangue que acaba de voltar de uma estada de dez dias sem saber como passou o tempo? Uma velha com o dom de ouvir coisas que o resto do mundo reza para nunca ouvir? Uma mentirosa”. Ora, se o próprio protagonista não sabe, muito menos o leitor é capaz de compreender. É verdade que Ullman reflete em seguida que nunca confiou na senhora Reyes e que se tratou, na verdade, de uma ação desesperada por parte dele. Entretanto, reconhecer a estupidez dos próprios atos de nada adianta quando se continua repetindo-os ad æternum.
Igualmente incoerente é o plano do antagonista da história. O demônio pretende usar o professor para revelar-se para o mundo. Para isso, ele obriga o sujeito a viajar pelos Estados Unidos seguindo pistas cada vez mais esdrúxulas e vivenciando casos de possessão demoníaca. Mesmo ignorando que há meios muito mais fáceis de atingir esse objetivo (principalmente na era de smartphones e Youtube), é difícil compreender por que Ullman é necessário ao plano, uma vez que o próprio demônio providencia a filmadora em Veneza e ordena a um médico que a entregue ao professor, quando poderia, muito bem, ter ordenado que o próprio filmasse o caso. A desculpa fornecida, de que Ullman, como professor acadêmico, tem a credibilidade que usuários aleatórios do Youtube não possuem, é eventualmente destruída pelo próprio demônio, que faz o professor afundar a própria imagem em sua busca pela filha. Além disso, o demônio contradiz suas próprias intenções, mostrando-se cada vez mais dedicado em esconder seus rastros de forma que apenas o professor descubra.
As motivações de outro coadjuvante, chamado pelo protagonista de “o perseguidor”, não chegam a fazer mais sentido. Elas parecem mudar sem critério algum, causando a impressão de que o conceito de praticidade é alienígena ao personagem. A função do perseguidor na história é somente a de motivar cenas de… perseguição, sendo que o próprio revela-se um matador de aluguel consideravelmente ineficiente, visto que é regularmente vencido por um professor universitário.
A edição da Darkside Books, por sua vez, merece alguns comentários. Em primeiro lugar, o livro é esteticamente atrativo, com capa dura em vermelho e uma lombada que emula desgaste, sugerindo a “antiguidade” da obra. Porém, ela também apresenta alguns pontos negativos relevantes. Cada capítulo, por exemplo, é iniciado com o título do livro e o nome do autor, o que inevitavelmente cansa o leitor, que lerá “O demonologista, Andrew Pyper” mais de vinte vezes – um hábito editorial ruim da Darkside. Além disso, a tradutora, Cláudia Guimarães, recheou o livro com notas de tradutor. Algumas são pertinentes – as que informam como são os trechos de Milton no original –, mas a maior parte é condescendente, sentindo-se na obrigação de explicar onde ficam determinadas cidades e de fornecer detalhes que o leitor pode deduzir sozinho. Em uma cena, por exemplo, Ullman narra “Conseguimos bancos livres no balcão do bar e pedimos uma dúzia de ostras Malpeque de New Brunswick e dois martínis para começar” e a tradutora tasca uma nota de rodapé informando que New Brunswick é uma “Província do Canadá, famosa pelas ostras Malpeque”: uma informação completamente irrelevante que deixa o leitor perplexo. Como é algo sistemático, ao fim do livro o leitor certamente estará irritado com as notas.
Apesar de suas ambições, O demonologista é um livro superficial e profundamente falho. Suas cenas de terror são eficientes e a ideia de construir uma alegoria sobre depressão é interessante. No entanto, sua trama é mal planejada, contendo furos e contradições em abundância, o que leva, no fim, a uma história problemática e esquecível.
por Rodrigo Lopes C. O. de Azevedo.
21 de setembro de 2015.