O Protegido.
Sumário
Genero: FantasiaParece haver dois livros distintos em O Protegido: o primeiro encanta, mas o último, infelizmente, deixa um gosto amargo na boca.
O Protegido, primeiro volume da série de fantasia Ciclo das Trevas escrita por Peter V. Brett, é um livro bem estruturado que apresenta um universo assustador, habitado por personagens atormentados, enquanto propõe, mesmo que brevemente, discussões sobre a sociedade. No entanto, seus últimos dois atos jogam para o alto tanto o desenvolvimento dos personagens quanto o bom senso, destruindo boa parte do que havia sido trabalhado até então.
A história de O Protegido transcorre em um mundo feudal mais inóspito que o habitual: além das péssimas condições de vida, dos preconceitos, da desigualdade e da injustiça social, demônios saem da terra sempre que o sol se põe. A humanidade, cujas armas mal arranham os terraítas – como são chamados –, apenas tenta sobreviver todas as noites, desenhando proteções mágicas ao redor de seus lares. Nesse cenário aterrador, o leitor é apresentado a três personagens principais: Arlen, o protagonista, é um menino que presencia sua mãe sendo mortalmente ferida por demônios certa noite; Leesha é uma garota que se vê tendo que enfrentar, além do perigo dos terraítas, o machismo da sociedade; enquanto o pequeno Rojer é uma criança de três anos salva por um menestrel quando sua casa é queimada pelos monstros.
Arlen é o mais ativo dos três personagens e aquele que influencia os principais eventos da história. O garoto é caracterizado por seu espírito combativo: ele deseja mais do que tudo lutar contra os terraítas e salvar a humanidade. Sua complexidade advém do fato de esse sonho não ser altruísta, tendo raízes na raiva que sente do pai, Jeph. No dia em que sua mãe é atacada, Arlen corre para fora das proteções para tentar salvá-la, mas Jeph permanece paralisado na varanda. Traumatizado pelo evento e enfurecido pelas justificativas do pai, o garoto foge de casa em busca de uma vida que lhe proporcione a satisfação de contrariá-lo, demonstrando que não somente é possível combater os demônios, como também vencê-los. Seu pai pode se acovardar, mas Arlen lutará.
Nesse sentido, o autor acerta ao adentrar a mente do personagem em seus grandes momentos de vitória para mostrar como sua euforia é rapidamente substituída por uma repentina solidão. Afinal, Arlen não se satisfaz vencendo os demônios, pois quer visibilidade e atenção: ele sempre acreditou que seu pai está errado, todos é que precisam perceber isso e aplaudi-lo pela bravura de se rebelar.
Brett também prepara com eficiência a tensão da primeira noite que o garoto passa sozinho. Arlen, desde o início, mostra-se diferente dos outros garotos: mesmo aos sete anos, ele excele em desenhar proteções e deseja tornar-se um mensageiro, responsável por viajar pelas terras entregando cartas e suprimentos. O leitor percebe rapidamente que a vida bucólica não foi feita para o personagem e que sua casa, apesar de confortável, não vai demorar a virar uma prisão. Além disso, sua posição sobre os demônios é estabelecida no primeiro capítulo com o suicídio de seu tio, causado pela vergonha do sujeito diante de sua atitude durante um ataque. Essa reação afeta Arlen e ajuda a cimentar sua ideia de que as pessoas precisam reagir contra os terraítas.
Nesse contexto, sua primeira noite após fugir funciona como um pequeno clímax, amarrando todos esses elementos. Arlen está só, sentindo-se finalmente livre. Entretanto, no momento em que os demônios saem da terra e ele precisa encará-los, o medo que paralisa seu pai o toma também. Por melhor protetor que seja, o personagem é ainda uma criança, incapaz de sustentar psicologicamente as investidas das criaturas. Assim, se ele começa menosprezando os terraítas, xingando-os dentro de suas proteções, não demora para ficar aterrorizado com a fúria deles e recuar involuntariamente. Os eventos que se seguem são repentinos e terríveis, mostrando a Arlen que as ações de seu pai estavam mais para prudência do que propriamente covardia.
Os terraístas são descritos de forma apavorante no livro. Implacáveis em seu instinto de matar, eles destroçam até mesmo seus próprios colegas quando veem a oportunidade. Seus ataques são brutais, dilacerando e queimando suas vítimas. Mas os traços que os deixam verdadeiramente aterrorizantes são os de crueldade: eles caçam e comem humanos, mas também dançam e riem enquanto o fazem. Os demônios não são apenas terríveis predadores, eles são sádicos.
Leesha, no entanto, não tem problemas somente à noite. Quando seu namorado, Gared, espalha para sua vila notícias sobre sua vida sexual, por exemplo, ela aprende que uma mesma ação pode ter repercussões diferentes dependendo puramente do gênero da pessoa. Enquanto Gared ganha respeito de seu pai e colegas, Leesha é tachada de vadia e impura. Rejeitada pela população local, a garota arranja consolo apenas em seu trabalho com a ervanária Bruna, a idosa médica da vila.
O autor acerta na caracterização inicial de Leesha, pintando-a como uma mulher forte e independente que frequentemente tem que lutar para desconstruir a cultura machista de sua sociedade. Em determinado momento, por exemplo, ela se recusa a ser tratada como troféu e aparece interferindo quando dois homens decidem brigar por seu amor.
É nos capítulos da menina que V. Brett tece pequenas críticas à sociedade e ao papel das religiões. No caso de Gared, o ato em questão ter ocorrido ou não é irrelevante para impedir a notícia de se cristalizar na mente da população, que se utiliza de argumentos esdrúxulos do estilo “Se ela está se dando o trabalho de negar, então deve ser verdade” e “É óbvio que aconteceu, afinal, é o que sempre acontece” para rotular negativamente a menina. Já no momento em que Leesha questiona Bruna a respeito de como as mensagens de seu livro sagrado corroboram a visão de mundo masculina, a resposta da ervanária é contundente: “É um livro escrito por homens”.
Se o antagonismo principal de Arlen é com seu pai, o de Leesha é com a mãe, Elona. Por não ter tido filhos homens e ter se casado com um homem apenas por dinheiro, amando outro, Elona recente a própria vida e pretende garantir que a filha tenha outro destino – quer ela queira ou não. Seu sonho para a filha é que ela torne-se a dona de casa de um homem com qual a própria Elona gostaria de ter se casado.
Leesha, porém, não deixa de confrontar a mãe e expor o que os planos dela realmente significam (“Não sou uma égua de criação”). Ela até quer ter filhos um dia; sua briga é quanto à necessidade do ato: a ideia de que uma mulher torna-se de alguma forma inferior por não virar mãe. No entanto, como o que ocorre com Arlen, sua atitude contra os pais acaba marcando negativamente sua personalidade devido aos extremos a que ela leva a questão: Leesha acaba se privando de uma vida amorosa e, muitas vezes, arriscando a própria vida para não deixar a mãe vencer.
Já Rojer não tem problemas com o pai nem com a mãe, pois ambos estão mortos. O menino cresce com o menestrel Arrick, aprendendo truques, malabarismos e a cantar. Ele é o personagem menos desenvolvido do livro e, se Arlen e Leesha tem seus conflitos apresentados logo no primeiro ato, o de Rojer só vai terminar de ser formado no final do livro: ele acredita que todos os que o protegem acabam assassinados de alguma maneira. Por ter apenas um terço da quantidade de capítulos dos outros personagens, de ser o mais simples deles e de nunca influenciar diretamente a narrativa, o personagem acaba surgindo supérfluo no contexto da história principal.
Após a apresentação inicial dos personagens, o livro parte para o treinamento deles em seus respectivos trabalhos: mensageiro, ervanária e menestrel. Este segundo ato da história é menos impactante, mas eficiente em continuar em desenvolvimento do drama de cada um. Arlen, por exemplo, percebe que a vida solitária que tanto deseja significa a ausência de amigos e relações amorosas, tendo que decidir entre continuar em sua missão de contrariar o pai ou ficar perto daqueles que ama; Leesha tem que lidar com uma tensa viagem para uma cidade grande, onde entende que o machismo não é um mal exclusivo de sua pequena vila; enquanto Rojer perde mais entes queridos.
Já a metade final de O Protegido é tão problemática, que chega a parecer ter sido escrita por outro autor. A consistência dos personagens e de seus conflitos, as críticas sociais e o desenvolvimento das cenas de tensão vão todos embora em troca de frases de efeito, batalhas épicas e eventos moralmente questionáveis. O livro praticamente se torna o seu oposto.
Arlen, por exemplo, transforma-se em outro personagem. Ele vira um super-homem, capaz de lutar kung fu com as criaturas, tatuar proteções no próprio corpo e usar o poder de regeneração do Wolverine. Ele torna-se um ser sombrio, capaz de derrotar qualquer coisa que fique em seu caminho. No segundo ato, ele é uma criança que não sai de dentro de seus livros, tendo que ser forçada a ir brincar na rua por seu mestre. No próximo, ele luta kung fu.
Porém, a pior mudança é relativa à personalidade de Leesha (spoilers até o final do parágrafo). Se antes ela era o bastião do livro contra a misoginia, no final ela decide que é uma boa ideia fazer sexo com o mesmo mensageiro que tentou estuprá-la várias vezes em uma viagem. Mais grave que isso é o evento, perto do clímax, em que ela é de fato estuprada por inúmeros ladrões de forma gratuita (ou para inserir uma carga de “realismo”, de acordo com o autor), refere-se ao ocorrido como uma “vergonha” a sua reputação e, não obstante, ainda decide fazer sexo dois dias depois com um homem estranho do qual ela ainda por cima sente medo.
Rojer é o único que permanece consistente, temendo que seus novos amigos também venham a morrer.
A tradução de Petê Rissati e o trabalho de revisão encabeçado por Marlon Magno também apresentam alguns elementos questionáveis. Em primeiro lugar, a tradução é cheia de excentricidades, traduzindo “garbage” literalmente para “lixo” em vez de “bobagem” ao referir-se a um discurso, e “core” para “profundas”, o que faz quase nenhum sentido, uma vez que existe o substantivo “profundezas” em português – sem contar que, ao colocar “corelings” como “terraítas” e “core” como “profundas”, Rissati elimina a relação entre as duas palavras. Em segundo, a revisão deixa passar vários erros de digitação (“Elissa deu uma leve sorriu”, “Mas as duas transformar toda tragédia numa discussão”) e até mesmo ortografia (“Seus olhos pousaram no estojo da rabeca e ele a pegou rapidamente, vendo que apenas alguns expectadores permaneciam”, “Quer que eu vá para uma vila enfestada com uma epidemia”). Nessa edição de 2015, há até um capítulo terminando no meio de uma frase (“Quando Jasin e Sali olharam para o companheiro, suas mãos”).
O início de O Protegido sugere um romance de fantasia excelente e memorável, mas em sua metade final o autor arruína todo seu trabalho até então, apresentando versões ora menos interessantes, ora completamente contraditórias dos personagens principais. No fim, parece haver dois livros distintos em O Protegido: o primeiro encanta, mas o último, infelizmente, deixa um gosto amargo na boca.
por Rodrigo Lopes C. O. de Azevedo.
29 de setembro de 2016.
Triste. Esse tipo de coisa acontece direto com bons livros que começam de maneira fantástica com personagens interessantes, mas da metade pro final desandam, se contradizem ou simplesmente “tocam o foda-se”. Uma cena de estupro até faria sentido em um livro que tenta passar uma imagem sombria e de certa maneira real do mundo, porém como foi descrito, a cena de estupro foi gratuita e contraditória, nível “Ride to Hell”. Esse tipo de coisa geralmente acontece quando o autor sofre um bloqueio criativo e larga o projeto por um tempo extenso, e mais tarde retorna e continua escrevendo, e as vezes quando a editora pressiona o autor com um prazo de entrega curto demais. Continuo interessado nessa série.
Agradeço os comentários! Sim, o autor até revela que sua intenção foi justamente passar essa imagem “realista” de mundo. O problema, como você apontou, foi a cena não funcionar narrativamente. Além disso, usar estupro meramente para choque é um imenso desserviço com as personagens femininas. No momento, estou lendo a continuação, Lança do Deserto, e nesse quesito o autor só piora. Parece que, de fato, tacou um foda-se, quase que obrigando todas suas personagens femininas a passar pela “experiência”. E o tratamento narrativo que ele dá às cenas é ainda mais grave. Abraços!
As escolhas da tradução podem ser questionáveis, mas talvez estejam de acordo com o público da obra. Quanto à revisão, acho que a “crítica” está ignorando que as duas palavras frisadas como erradas, por exemplo, existem e cabem no contexto citado. Terceiro: não se esqueça que o livro passa pelas mãos de muitas pessoas, principalmente quando se trata de emendas. O próprio revisor, o editor e o diagramador podem, às vezes, se equivocar. Acontece, e é uma infelicidade. Incompetência é outra história.
Os comentários feitos aqui são deselegantes, para dizer o mínimo.
Olá, Antonio! Agradecemos o comentário!
Sobre as palavras sublinhadas, elas infelizmente não cabem no contexto. A palavra”expectadores” está como tradução de “onlookers”, ou seja, deveria ser “espectadores”: aqueles que assistem a algo e não aquelas que estão a espera de algo. Já “enfestar” tem significado de aumentar/fazer crescer ou dobrar, o que não faria sentido no caso. O correto seria “infestada”. Portanto, são erros de ortografia sim. Ou de digitação se preferir.
Quanto ao fato de várias pessoas trabalharem em uma tradução, estamos cientes disso. Em nenhum momento faltamos com respeito com elas, apenas apontamos alguns erros no trabalho, o que faz parte de nosso dever. Também achamos lamentável quando erros ocorrem e é justamente ao apontar um erro que se dá a chance de ele ser consertado.
E para expandir um pouco a ideia de que o crítico não deve se abster de apontar os problemas de uma obra cabe a famosa frase de Pauline Kael: “Nas Artes, a única fonte confiável de informações é o Crítico. O resto é publicidade”.
Abraços!
Rodrigo, obrigado pela resposta.
Sim, você tem razão. Eu já tinha conferido o trecho no original, no Google Books. Porém, ainda assim, creio que não houve “erro”, mas “adaptação”, como ocorre em muitos outros trechos, não exatamente iguais ao original (o que, sabemos, nem sempre é possível numa tradução). Como você mencionou, seria um erro muito “patente” para não ter sido “intencional”, e, até onde pude apurar (confesso, não li o livro inteiro), só vi um ou outro erro de digitação, também compreensível, apesar de lamentável.
Ou, claro, posso estar sendo indulgente ao extremo e, de fato, os erros ocorreram e ponto.
Como escritor, já me deparei com erros em minhas publicações, os quais, posteriormente, percebi terem sido meus, e que a revisão, para minha infelicidade, deixou passar. Certa vez confrontei um editor a esse respeito. Obviamente, estava aborrecido. Ao analisar a prova, no entanto, percebemos que o erro foi do diagramador, que não bateu a emenda. Talvez seja esta a razão da minha “indulgência”: a consciência de que há muita gente envolvida, às vezes ao mesmo tempo, na produção de um livro.
Também como tradutor já me deparei com “erros” de “terceiros”: a orelha de um livro, que também ajudei a editar, apresentava um “problema” de regência que, eu sabia, não estava no texto original que preparei. Era, na verdade, um “problema” em parte, já que a regência alterada não alterou também o sentido do que eu pretendia dizer (ou melhor, traduzir). Procurei “investigar” o ocorrido, e me disseram que o texto da orelha foi diretamente para a diagramação. Alguém, em algum momento, redigitou aquele texto, ou o alterou “para caber”. Sinceramente não sei o que houve, ou quem foi o responsável. Mas pus na conta. Por isso comentei que o seu comentário foi “deselegante”, como, em tempo, devo admitir que foi o meu. Desculpe-me.
Abraços.
Agradecemos novamente sua participação, Antonio.
Seu comentário joga uma outra luz sobre algumas das dificuldades do processo de edição e tradução e mostra como é difícil apontar o culpado por um erro ou deslize em todo o projeto. Pode ter certeza que tomaremos cuidado com isso e reclame se acabarmos sendo injustos em alguma crítica.
Espero que volte mais vezes ao site.
Aguardamos sua participação e críticas!