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Ruas Estranhas.

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Posted 03/12/2015 by in Fantasia Urbana

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2/ 5

Sumário

Genero:
 
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Editora:
 
Idioma Original:
 
Título Original: Down these strange streets.
 
Tradução: Alexandre Martins.
 
Edição: 2012.
 
Páginas: 492.
 
Resumo:

Contendo 17 contos que variam drasticamente em qualidade, Ruas Estranhas configura-se uma apresentação irregular e confusa em relação às próprias características do gênero que deseja expôr aos seus novos leitores.

by Rodrigo Lopes C. O. de Azevedo
Full Article

Ruas Estranhas é uma coletânea de 17 contos de fantasia urbana. Mas o que é fantasia urbana? George R. R. Martin, editor do livro, o classifica como um gênero bastardo: ele seria resultante da combinação de uma história de terror com uma história policial. Ou mais precisamente, nas palavras de Martin, “os heróis da fantasia urbana saem do mistério policial, enquanto os vilões, monstros e antagonistas têm suas raízes no horror clássico. Mas é a mistura que dá valor ao gênero”. Buscando apresentar ao leitor contos com os mais variados tons, com o fim de demonstrar as grandes possibilidades que esse gênero pode abarcar, Martin reuniu uma gama de autores bastante eclética, contando tanto com famosos – como Charleine Harris da série de livros que inspirou True Blood, Conn Iggulden dos títulos O Imperador e O Lobo das Planícies e Diane Gabaldon da série Outlander – como também desconhecidos, além de misturar autores já familiares a esse gênero e outros novos a ele.

O tom geral que permeia o livro é certamente o investigativo. Não importa a história, o protagonista sempre estará tentando solucionar um mistério aparentemente sobrenatural. O termo “detetive particular” é presente em quase todas as histórias (sua existência parece até um requisito imposto por Martin e seu coeditor Gardner Dozois) e a atmosfera, que muitas vezes se aproxima do Noir, é sempre pesada e séria. A maioria dos contos, por esse motivo, é narrada em primeira pessoa e possui protagonistas durões e alcoólatras, que revelam, por suas eventuais introspecções, que a motivação que os faz jamais hesitar em enfrentar o perigo não é a coragem pura, mas um senso de dever, quase que profissional, que também os define como homens.

George R. R. Martin também não proibiu os autores de trabalhar com suas próprias séries, e, dessa forma, contos como Dor e sofrimentoLadrão de sombras e Lorde John e a peste de zumbis operam com personagens e universos já conhecidos pelos fãs de seus autores. Essa estratégia tem seus lados positivos, puramente comerciais, e um negativo forte, que depende da habilidade do escritor para contorná-la: a provável não familiaridade do leitor  com esses universos.

Basta pegar Dor e sofrimento de S. M. Starling para atestar isso. O conto, que pertence ao universo da série Shadowspan, narra a investigação de um policial chamado Salvador sobre um sequestro incomum. A narrativa já é por si só bagunçada pela presença de sonhos bizarros e  sem propósito que assolam o protagonista durante a noite, sonhos estes que além de interromperem a investigação desnecessariamente – o pouco de desenvolvimento de personagem resultante poderia ser feito de qualquer outra forma – geram uma sensação de confusão no leitor. Mas, não obstante, quando a história finalmente engrena e parece alcançar um clímax nervoso e tenso, surgem em cena aleatoriamente os ditos Shadowspan, que resolvem tudo rapidamente e a história termina. O que são eles? Porque eles ajudam o protagonista e lhe oferecem uma escolha clichê no final? E, mais importante, por que diabos tudo aquilo aconteceu? São todas as perguntas as quais o leitor, por não conhecer a série Shadowspan, mesmo se agarrando às dicas dúbias e vagas da trama, não fará a menor ideia de como responder, prejudicando assim praticamente a totalidade do conto.

Como se não bastasse, um exemplo ainda bem pior é Ladrão de sombras de Glen Cook – autor do livro A Companhia Negra. Transcorrendo no universo de sua série Garret, D.P (também não traduzida para o português), o autor espanta ao não tentar elucidar ao leitor novo qualquer característica ou explicação básica sobre sua obra. Sem situá-lo em momento algum, a já bisonha história se torna uma verdadeira aberração completamente desprovida de lógica e coerência, em que o leitor não será capaz sequer de identificar a identidade dos interlocutores nos diálogos e muito menos entenderá a motivação de qualquer personagem: uma mulher-rata chamada Singe, que na verdade pode ser apenas uma grande rata fêmea que fala – é difícil discernir a diferença pela pobre descrição – e o “Homem Morto”, que pode ser no máximo descrito como alguém que está lá, não está, e faz coisas incompreensíveis e assim complexas de se explicar a natureza, com certeza se destacam nesse aspecto. O máximo que o leitor conseguirá entender após o antecipadíssimo término do conto, é que havia umas sombras dentro de uma caixa e que por essa razão havia mais coisas tentando obtê-la. E o resto ele verá apenas como um bando de linhas e frases desconexas em sequência, que uma hora, porque nem todo tormento é infinito, chegam ao fim.

Lorde John e a peste de zumbis segue caminho diverso. Diana Gabaldon apresenta seu protagonista como se estivesse lidando com ele pela primeira vez: trata-o com um fascínio detalhado e instigante que prende o leitor a cada mergulho no seu subconsciente. Apesar de apresentar uma ambientação diversa da habitual para o livro (como a história se passa na selva, na Jamaica, dificilmente o conto pode ser classificado como fantasia urbana) a trama é muito bem trabalhada – a calma narrativa necessária para isso a tornou o maior conto da coletânea –, pois Gabaldon oferece detalhes ao leitor que sempre se mostram importantes para o deslinde do mistério sobrenatural. Construindo-o em cima do processo de criação dos zumbis e na misticidade das cobras, Gabaldon resolve o mistério a cerca de ambos de forma coerente, lógica e satisfatória, não traindo as nuances científicas sugeridas ao longo da leitura.

Coração faminto de Simon R. Green também se destaca nesse sentido por apresentar seu universo fantástico, chamado Nightside, de forma eficiente. Nightside é o coração negro de Londres, um local escondido e perigoso, habitado pelas mais variadas criaturas: bruxas, homens neandertais e emissários da escuridão exteriorsão mencionados logo na segunda página divertindo-se em um bar. Entretanto, as descrições de Green divergem das utilizadas em Ladrão de sombras por contextualizar quais daqueles são os verdadeiros monstros, além de ressaltar a importância de certos eventos e diálogos, dando ao leitor informação suficiente para acompanhar tudo e ainda se surpreender com as reviravoltas.

Também trabalhando com universos lotados de excentricidades sobrenaturais, Charlaine Harris abre o livro com um conto morno, chamado Morte por Dália, que demonstra muito bem a habilidade da autora em construir e desenvolver sociedades fantásticas repletas de criaturas provindas de histórias de terror, embora a narrativa falhe em empolgar o leitor. O enredo gira em torno do assassinato de um humano na festa de posse do vampiro-chefe local, que convoca Dália para solucionar o crime e pegar o culpado. Enquanto a relação entre as diversas criaturas diverte por sua racionalidade (a interação entre vampiros, lobisomens e demônios é fascinante por parecer lógica), o ritmo da história é o mesmo do início ao fim, fator que entrega à revelação final uma sensação de marasmo que diminui a importância de todo o evento.

Já os contos Estige e pedras, de Steven Saylor, e Cuidado com a cobra, de John Maddox Roberts, servem para conferir a fantasia urbana uma sensação de atemporalidade. Enquanto boa parte das demais histórias se passam nos tempos modernos, em paisagens urbanas pichadas pela tecnologia, ambos os contos transcorrem na antiguidade: o primeiro na Babilônia e o segundo em Roma. Embora certamente escapem muito da descrição fornecida por Martin ao gênero – Cuidado com a cobra sequer sugere qualquer horror sobrenatural – eles são bons contos por seus próprios méritos. No entanto, é importante salientar que ambas as histórias não encantam por sua elegância narrativa, reviravoltas, suspense ou trama elaborada. Em todos esses aspectos elas são apenas regulares. O elemento que as torna interessantes é justamente a época em que transcorrem. O leitor fará junto com o protagonista de Estige e pedras, Gordianus, um elucidativo e descritivo tour pela Babilônia de outrora, aprendendo um pouco sobre os costumes, as crenças, os mitos e os medos antigos daquela cidade. Enquanto isso, o protagonista de Cuidado com a cobra é um proeminente senador romano, fator que gera vários trechos que discorrem sobre a hierarquia social daquela época, como o comentário cínico do protagonista ao ver o olhar amargo de seus escravos, resultante de uma súbita mudança de rota: “Escravos de liteira acham que qualquer direção é subida”.

Por outro lado Sem mistério, sem milagre, de Melinda Snodgras, possui um elemento sobrenatural muito mais forte e ainda por cima residindo no próprio protagonista. Ele é um Antigo, um ser que é praticamente um deus ou o próprio Deus católico, característica que inevitavelmente gera os diálogos mais simbólicos de Ruas Estranhas, em uma trama que, no entanto, não consegue aproveitá-los de forma suficiente, graças ao pequeno número de páginas em que é narrada.

Sempre a mesma velha história, por sua vez, é menos grandiloquente e, por esse motivo mais calmo, dispondo da trama mais pessoal da coletânea, focada em apenas um evento, além de seus antecedentes e consequências. Novamente há uma inversão ao conceito dado por Martin e é o herói e não o vilão o proveniente das histórias de terror. E a busca por vingança – ou justiça – empreitada pelo protagonista é acertadamente intercalada com os flashbacks que a conferem significado e peso emocional.

Por fim, De vermelho com pérolas, de Patricia Briggs, se sobressai por ter o enredo mais bem trabalhado do livro, em que cada detalhe é devidamente conectado com a história principal e cada subtrama é concluída satisfatoriamente. Partindo do atentado à vida de seu namorado, o protagonista Warren, um lobisomem, é levado forçosamente a uma investigação em busca dos culpados. Por se tratar de um universo também povoado por várias criaturas sobrenaturais – a principal ajudante de Warren é uma bruxa – foi importantíssimo para separar essa história das demais a escolha da autora de circular a trama em volta de sentimentos e ações primordialmente humanas, como amor e inveja, uma vez que tal escolha confere a seu conto um toque mais empático.

Já se tratando de histórias puramente originais, os editores George R. R. Martin e Gardner Dozois também conseguiram reunir um grupo de contos consideravelmente distintos em forma, narrativa e tom. Além disso, eles são certamente mais consistentes que seus vizinhos famosos e quase compensam a existência deles.

Hellbender, de Laurie R. King, possui o protagonista com o arco narrativo mais visível do livro. Transcorrendo em um mundo onde foram criados geneticamente seres humanos híbridos, contendo parte do DNA de uma salamandra, a trama se relaciona diretamente com as discussões sobre preconceito, racismo e intolerância, presentes em qualquer sociedade tanto moderna quanto antiga. O enredo se foca em Mike Heller, um detetive particular e um Salaman recluso e escondido, que acaba pegando um caso que envolve o sequestro de vários membros de sua raça. Sua investigação, portanto, o conduz a descobertas e decisões que modificam drasticamente tanto sua personalidade, através da forma em que enxergava sua situação no mundo, quanto como a própria sociedade lida com os Salamen.

O curioso caso do deodand, de Lisa Tuttle, desfruta de uma rara protagonista do sexo feminino – devido às influencias fortes do Noir, as mulheres no livro são apresentadas mais frequentemente como femme fatales – em um enredo confessamente inspirado em Sherlock Holmes. A protagonista, desempregada, descobre um anúncio para ajudante de detetive particular e decide testar sua sorte. Assumindo o papel de “Watson”, ela auxilia o jovem Jasper a desvendar o mistério por trás dos assassinatos aparentemente cometidos por vários deodands – objetos que foram usados como arma em crimes horríveis. A trama é bem conduzida e os personagens são críveis, principalmente os dois coadjuvantes relacionados aos deodands que possuem conflitos internos consideravelmente originais e profundamente relacionados aos tais objetos. O único ponto negativo do conto é seu final pouco corajoso que dificilmente surpreenderá o leitor.

A dama grita de Conn Igulden, escritor de vários romances históricos, é, por sua vez, um dos pontos altos do livro, graças a uma narrativa extremamente divertida e bem humorada que acompanha os momentos mais impactantes da vida profissional do protagonista, um caça-fantasmas picareta, que de repente se depara com forças sobrenaturais reais. Adotando a partir desse momento características que em diversos aspectos remetem surpreendentemente a Pokèmon, o conto consegue se manter fiel ao gênero descrito por Martin ao mesmo tempo que o subverte às necessidades da natureza cômica de sua história. Apresentando ainda um clímax que é eficiente em tornar a situação do protagonista finalmente séria e urgente, A dama grita possivelmente poderá ser considerado um bom exemplo do melhor trabalho de seu autor.

O conto A sombra que sangra, de Joe R. Lansdale, é quase tão bem sucedido quanto. O autor possui um estilo e senso de humor bem parecido com o de Stephen King, uma vez que pretende assustar e ao mesmo tempo divertir o leitor com grandes toques de humor negro na condução de sua intrigante história. A sombra que sangra segue a busca de seu protagonista pelo irmão desaparecido de sua amiga, Alma May. A atmosfera suja e forte que Martin tanto elogia em seu prólogo está certamente presente aqui: Alma May é uma prostituta, Tootie, seu irmão, é um drogado, e o local que o protagonista vai buscá-lo é um bairro perigoso, imundo e desolado. O elemento sobrenatural é ainda consideravelmente lovecraftiano, disforme, medonho e aterrorizante, e a condução da narrativa é firme, só vacilando no momento em que o protagonista, enquanto foge de carro, reflete sobre sua situação (“Era como uma grande massa de pudim de chocolate rolando atrás de nós”), criando na mente do leitor uma imagem ridícula que destrói qualquer sensação de urgência.

A diferença entre um enigma e um mistério, do novato M. L. N. Hanover, também se constitui em uma das melhores histórias do livro. O conto começa como uma típica trama de possessão demoníaca: o detetive Mason se depara com um assassinato em que o principal suspeito começa a gritar, se contorcer e falar latim no meio do interrogatório, afirmando estar possuído. Então o chefe do departamento de polícia chama um homem religioso para ajudar. O enredo, que acompanha a investigação que os dois realizam, prende a atenção justamente pelo fator descrito por Martin: a imprevisibilidade de sua solução, uma vez que os diálogos rapidamente fazem o leitor presumir que o assassino pode não ser o único elemento sobrenatural da história.

E para terminar a coletânea, George R. R. Martin escolheu o conto de Bradley Denton: A águia de Adak. Quase tão grande quanto Lorde John e a peste de zumbis, a história de Bradley Denton certamente pode ser considerada a mais original da coletânea. Um soldado americano é mandado por seu coronel para explorar um distante cume nas Aleautas, uma região congelada e varrida por um vento rascante, onde se suspeita que militares estejam praticando atividades escusas. Ao se deparar com uma gigantesca águia pregada no topo, o soldado então é forçado a conduzir uma investigação com a ajuda do cabo Pop, uma figura alta e magra, responsável pelo jornal militar. O conto espaça seus momentos de ação e revelação muitíssimo bem, alternando entre um e outro, e Denton constrói uma gama de personagens trágicos e convincentes com segurança, além de retratar o período da Segunda Guerra Mundial de uma perspectiva nova, graças ao distante e desolado local em que se passa. Terminando de forma coerente, em um clímax que resume as ambições de seus personagens e o simbolismo de várias cenas, A águia de Adak, sem dúvidas, seria o conto ideal para fechar o livro, não fosse por seu único porém: não ter absolutamente nada a ver com o gênero descrito por Martin, uma vez que o único elemento sobrenatural presente é completamente secundário: a história mais facilmente poderia ser classificada como um romance histórico.

George R.R. Martin define fantasia urbana como um gênero bastardo, uma mistura entre mistério policial e horror sobrenatural, em que policiais e detetives enfrentam monstros nojentos e repulsivos em paisagens miseráveis e sujas. Provavelmente para dar diversidade a sua coletânea, Martin e Gardner Dozois deram muita liberdade aos seus autores convidados, o que infelizmente resultou em histórias que, embora sejam intrigantes, dificilmente se adequam ao gênero descrito pelos dois. Não somente isso, como também a permissão de trabalhar dentro de suas próprias obras, fez autores como Glenn Cook e S.M Stirling criarem histórias incompreensíveis para aqueles não familiarizados com seus trabalhos – ou, no caso de Cook, para qualquer ser humano em suas faculdades normais. Por esses motivos, contendo 17 contos que variam drasticamente em qualidade, Ruas Estranhas configura-se uma apresentação irregular e confusa em relação às próprias características do gênero que deseja expor aos seus novos leitores.

por Rodrigo Lopes C. O. de Azevedo.

Publicado originalmente em 16 de Março de 2014.


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Rodrigo Lopes C. O. de Azevedo


One Comment


  1.  
    Felipe

    Boa crítica, me poupou alguns reais, pois cheguei a pensar em comprar o livro e quase fui enganado pelo Nome gigantesco de G.R.R. MArtin na capa. rs.





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