Seu primeiro portal para notícias e críticas literárias!

 


Sonho Febril.

0
Posted 10/05/2015 by in Terror

Rating

Nota:
 
 
 
 
 

3/ 5

Sumário

Genero:
 
Autor:
 
Editora:
 
Idioma Original:
 
Título Original: Fevre Dream.
 
Tradução: Luiz Reyes Gil.
 
Edição: 2015.
 
Páginas: 368.
 
Capa: Marc Simonetti.
 
Resumo:

Sonho Febril é um livro de terror com algo a dizer. George R. R. Martin, no entanto, subestima a inteligência do leitor, fazendo questão de deixar suas ideias absolutamente claras para depois ainda repeti-las algumas vezes só por precaução. O resultado é igualmente óbvio: um romance relevante, mas um tanto quanto chato.

by Rodrigo Lopes C. O. de Azevedo
Full Article

Sonho Febril é um livro sobre vampiros escrito por George R. R. Martin que utiliza as criaturas para discutir a função que a classe dominante exerce na sociedade. Trata-se de um romance de terror capaz propor discussões inteligentes, prejudicadas apenas por uma estrutura narrativa deficiente marcada pela falta de sutileza e pela repetição.

A história transcorre nos Estados Unidos do Século XIX, em um período próximo à Guerra de Secessão. O foco da narrativa, apesar de tratar do embate político pertinente à época, é mais limitado, voltado para o mercado de barcos a vapor americano. Abner Marsh é um capitão falido que recebe uma proposta de sociedade inesperada de Joshua York, um misterioso aristocrata. Os dois, então, se juntam e constroem uma embarcação fabulosa chamada Fevre Dream (o título original de Sonho Febril). No entanto, o capitão não demora a reparar nos estranhos hábitos noturnos de York e começa a suspeitar que o sucesso da empreitada não é a prioridade de seu sócio.

Abner Marsh pretende fazer com que seu barco entre para a história ao superar em uma corrida o Eclipse, o maior e mais famoso vapor a navegar os rios. Como o livro segue, em sua maior parte, o ponto de vista de Marsh, ele está repleto de descrições sobre o funcionamento dos vapores (o leitor, por exemplo, certamente gravará que eles costumavam queimar banha de porco para acelerá-los rapidamente) e sobre como opera a mente daqueles indivíduos – que, como bons marinheiros, adoram se embebedar e contar histórias. Já o sonho de Joshua York, um vampiro, é que sua raça viva pacificamente com os humanos. Ele deseja acabar com a sede de sangue que impulsiona à violência aqueles iguais a ele, sede esta comparada em seus efeitos a uma febre – daí o nome do livro.

Os vampiros de Sonho Febril compartilham várias características com sua concepção padrão: morrem quando expostos ao sol, bebem sangue de humanos, apresentam forte poder de manipulação e sedução e, mais importante, funcionam como uma representação de uma classe social dominante que têm na forma de manutenção de seu poder a exploração do trabalho alheio.

Tal alegoria ganha forte respaldo na descrição do vilão: o vampiro Damon Julian. O personagem vive como um dono de terras em uma fazenda, alimentando-se da vida de escravos. Ele não faz absolutamente nada, não possuindo qualquer ofício ou profissão. Seu capataz, Sour Billy Tipton, é quem realiza e coordena todos os serviços. Julian faz parte da elite daquela sociedade e, totalmente improdutivo, ao invés de ajudar a sustentar a nação, ele apenas a consome. Aliás, o próprio personagem tem conhecimento disso, definindo muito bem sua função social: “Nós somos os senhores. E senhores não trabalham. Deixe que eles façam os ternos. Nós só devemos usá-los. Deixe que eles construam os vapores. Cabe a nós navegá-los. Deixe que eles sonhem com a vida eterna. Mas nós é que devemos vivê-la, e beber da vida deles, saborear seu sangue. Somos nós os senhores desta terra, e essa é a nossa herança”.

York, por outro lado, enxerga beleza no poder de criação. Ele valoriza a habilidade de construir e poder dizer que algo é seu por ser fruto direto de seu trabalho e não de um título de propriedade. Ele é contraposto diretamente com Julian, o qual, por levar uma vida tediosa e apática, jamais cria, apenas destrói.

Por esse motivo, é importante apontar que Joshua York é um personagem mais condizente com o posto de protagonista do que Abner Marsh, apesar de o livro, escrito em terceira pessoa, acompanhar o ponto de vista do capitão. São diversas as razões para tal conclusão: York é o personagem que age, fazendo planos e projetos, enquanto Abner apenas reage a eles; é York quem tem o arco dramático mais forte; o conflito central da história gira em torno de sua visão de mundo; e é até mesmo o seu objetivo o mais determinante para o desenrolar dos acontecimentos.

Desse modo, é importante observar como o principal conflito de ideias da história envolve justamente o julgamento das ações de Julian. Enquanto York obviamente o condena, classificando seus atos como de maldade pura, Julian remove a moral da equação, enxergando apenas uma “ordem natural das coisas”: o mais forte subjuga e explora quem conseguir, o bem e o mal sendo apenas uma dicotomia construída em prol dos fracos e dos covardes.

É uma discussão que encontra um exemplo claro no período histórico em que a trama é situada. Não é a toa que a posição de ambos acerca da abolição é marcada repetidamente: York vê a escravidão como algo repugnante e Julian, como um capítulo inevitável da história da humanidade. Para o vilão há somente “força e fraqueza, senhores e escravos”.

Quanto a esse ponto, Martin também realiza um intertexto relevante com a Bíblia. Uma das justificativas encontradas para a escravidão naquela época era a de que os negros eram descendentes de Caim (postura grotesca adotada ainda hoje por alguns políticos brasileiros como Marco Feliciano). Todavia, em Sonho Febril são justamente os vampiros, detentores de poder, que são estabelecidos como as crias monstruosas do personagem bíblico. Essa inversão, portanto, funciona como uma crítica básica, mas eficaz, a essa ideia.

É também interessante notar como Joshua York, tão movido por seu conjunto de valores (ele confessa sempre perder o controle quando se depara com o que considera ser “o mal”) é o personagem mais ligado à arte, surgindo diversas vezes lendo, recitando e discutindo poesia. Seu camarote no Fevre Dream é basicamente constituído de uma biblioteca. A ideologia de Abner Marsh, por sua vez, passa por uma mudança que acompanha sua relação com a poesia: no início ele é apático quanto aos eventos ao seu redor e ignorante quanto à literatura, mas vai gradativamente conhecendo mais obras e adotando posturas políticas similares a de seu sócio. Enquanto isso, se Damon Julian até aparece em uma cena ou outra lendo, sua posição acerca da arte é de distanciamento crítico: ele não aprecia sua estética, considerando-a apenas algo a ser consumido. Com isso, o autor elabora um paralelo forte entre arte e moral, tentando mostrar que a primeira é fundamental para a formação da segunda.

No entanto, apesar de propor alguns bons debates, Martin dirime a força deles com uma condução narrativa delineada pela obviedade e pela redundância.

Suas metáforas ao longo do romance, por exemplo, são, além de simples, mastigadas para o leitor. Em determinada cena, o Fevre Dream é descrito navegando em um rio cuja água barrenta e avermelhada escureceu, construindo uma metáfora visual clara, mas o autor faz questão de concluir que o barco “se movia por um rio de sangue”. Em outro momento, Julian e York estão discutindo sobre seus pontos de vista sobre a humanidade, enquanto o primeiro tenta sufocar um bebê escravo e o segundo, salvá-lo. Para caso alguém não tenha entendido a função simbólica da criança, Martin eventualmente se refere a ela como um “pedaço de humanidade”.

Cena esta, aliás, que já apontava em 1982 (a data da primeira edição do livro) a estratégia de Martin de chocar o leitor com cenas intensas de violência – o que ele viria a usar em profusão mais tarde com sua série de fantasia As Crônicas de Gelo e Fogo.

Todavia, tal cena chega tarde demais na narrativa. Sonho Febril sofre com um grave problema de estrutura que o faz ser terrivelmente lento em sua primeira metade: seu principal ponto de virada na história demora muito a ocorrer – tanto que ele possui metades em vez dos usuais três atos.

Em vez de distribuir as descrições daquele universo e os debates sobre ele uniformemente pelo livro, Martin concentra essas informações na metade inicial. Com isso, o ritmo torna-se ridiculamente lento até o ponto de virada e frenética após ele. Quanto a esse início problemático, Martin tenta criar tensão ao manter em suspense a identidade de York. O problema é que qualquer leitor já adivinhou que York é um vampiro em sua primeira cena – se já não o tiver feito lendo a sinopse – e, dessa forma, fica sem ter o que prender sua atenção por um bom tempo.

Essa lentidão inicial não é sequer justificada narrativamente, visto que vários capítulos iniciais são repetitivos. Os que mais trazem esse problema são aqueles focados em Damon Julian: no primeiro já é possível para o leitor entender o que o vampiro representa, além da extensão de sua maldade e de seu poder, mas ainda assim há vários iguais martelando as mesmas ideias no leitor, cansando-o no processo.

Ainda sobre Julian, é curioso notar como seu capataz, Billy, tem uma função narrativa muito similar a da criatura Gollum em O Senhor dos Anéis. Ambos são descritos como seres horríveis tanto em aparência quanto em seus atos (Billy chega a dizer “Por aqui, quando um capitão entra numa corrida e precisa de mais vapor, ele mandar enfiar na fornalha um preto bem gordo. Banha de porco é cara demais. Está vendo, também sei algo sobre barcos a vapor”), desejam algo que seus mestres possuem e que nunca irão conseguir (o Um Anel na obra de Tolkien e vida eterna no caso de Billy) e têm, nessa inveja, o estopim para suas ações no clímax. Em uma cena em que Billy é poupado por Abner Marsh, por exemplo, um fã de Tolkien ouvirá a voz de Gandalf em sua mente profetizando que Billy ainda terá um grande papel nos eventos que se seguirão, para o bem e para o mal.

Sonho Febril é um livro de terror com algo a dizer. George R. R. Martin, no entanto, subestima a inteligência do leitor, fazendo questão de deixar suas ideias absolutamente claras para depois ainda repeti-las algumas vezes só por precaução. O resultado é igualmente óbvio: um romance relevante, mas um tanto quanto chato.

por Rodrigo Lopes C. O. de Azevedo.

05 de Outubro de 2015.


About the Author

Rodrigo Lopes C. O. de Azevedo


0 Comments



Be the first to comment!


Deixe uma resposta