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The Bonehunters.

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Posted 04/28/2018 by in Fantasia

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5/ 5

Sumário

Genero:
 
Autor:
 
Editora: ,
 
Idioma Original:
 
Título: The Bonehunters.
 
Título Original: The Bonehunters.
 
Tradução: Lido no original.
 
Edição: 2016.
 
Páginas: 980.
 
Resumo:

Em The Bonehunters, o sexto capítulo da série The Malazan Book of the Fallen, Steve Erikson trabalha com a ideia de que o passado é profecia: um inimigo implacável que é enfrentado tragicamente, concretizando-se com a força de destino.

by Rodrigo Lopes C. O. de Azevedo
Full Article

O passado é inquieto, agitado. Sofrendo constantes revisões históricas e políticas, ele não permanece inalterado e nem estático, revelando uma tendência preocupante de estender suas garras para o futuro, repetindo-se. Ele é o ponto de partida, mas também o de chegada, negando o progresso. Em The Bonehunters, o sexto capítulo da série The Malazan Book of the Fallen, Steven Erikson trabalha com a ideia de que o passado é profecia: um inimigo implacável que é enfrentado tragicamente, concretizando-se com força de destino.

A história segue o 14º Regimento Militar do Império Malazano, liderado por Tavore Paran, que procura destruir o resto da rebelião de Sha’ik eliminando seu líder Leoman, enquanto o persegue até a cidade de Y’ghatan, conhecida por ter sido palco de uma famosa derrota do Império. Enquanto isso, o historiador Herboric repete sua viagem com Felisin para cumprir uma missão que rejeita, Icarium e Mappo dão prosseguimento a sua cíclica jornada para recobrar as memórias do primeiro e Karsa procura cumprir seu papel de libertador, mas ainda preso pelas correntes de sua formação.

O grupo militar de Tavore é o centro narrativo do livro, protagonizando seus dois momentos climáticos mais importantes e possuindo o arco que melhor simboliza seu tema. A jornada do 14º Regimento é uma de gênese e desenvolvimento, que encontra na batalha em Y’ghatan o momento chave de sua criação e um símbolo da luta inútil contra o passado: o nome Bonehunters metaforiza justamente a sina do grupo de reviver tragédias históricas, como se estivesse perseguindo incansavelmente o passado.

O cerco a Y’ghatan, que dado seu escopo serviria muito bem como um clímax em outros livros, aqui é ponto de virada inicial. Primeiramente, Erikson prepara o confronto opondo os dois lados com relação a suas forças e fraquezas militares. O exército de Tavore detém uma vasta superioridade numérica e tecnológica, enquanto os soldados de Leoman têm mais experiência de batalha e a vantagem geográfica, além de lutarem por uma causa pela qual não somente estão preparados para morrer, como aguardam ansiosamente esse fim, considerando-o glorioso – não é a toa que são constantemente referidos como fanáticos pelo seu próprio comandante. O grupo de Tavore, por outro lado, parece perdido e sem rumo, continuando a luta meramente porque foi comandado. Para agravar a situação, Leoman claramente tem um plano, mas Tavore é fechada demais para demonstrar se está tão desnorteada quanto seu exército ou se possui um contra-ataque pronto. Por outro lado, sua lealdade é inabalável, enquanto a de Leoman é questionada até mesmo pelo seu braço direito, Corabb.

Corabb, aliás, é o responsável por oferecer o ponto de vista da rebelião de Leoman. É um personagem fascinante que, em um momento surge filosofando sobre as estrelas revelando-se poético e otimista, e, em outro, ressentindo a amante de Leoman, mostrando-se mesquinho, carente e machista. Seu arco narrativo é direto e eficaz, envolvendo a desconstrução de sua visão unidimensional sobre seus inimigos: ao opor-se ao Império Malazano, Corabb inicialmente o vilaniza por completo, atribuindo-o defeitos exagerados, além de abraçar como verdade qualquer notícia ou rumor que confirme sua visão de mundo generalizante – e por isso limitada. Seu ódio é condição necessária para mascarar a natureza de suas próprias posições e atitudes violentas, constituindo um requisito mínimo para a formação do fanatismo que seu próprio líder condena, embora manipule. A trajetória de Corabb, todavia, é otimista, mostrando-o gradativamente desmantelando seu maniqueísmo ao ser atacado com indícios contrários e, assim, adquirindo uma visão multifacetada do mundo, que lhe permite enxergar a convicção como um veneno que corrompe a alma e bloqueia a empatia.

Poucos antagonistas em The Bonehunters não recebem algum traço de complexidade. Até mesmo uma criatura monstruosa demonstra ter seu próprio senso de justiça quando observamos o mundo pelo seu ponto de vista. Leoman, por exemplo, passa longe de ser unidimensional. Apesar de ser tratado como o antagonista, ele se mostra gentil e sensato em diversos instantes, além de sua amizade com Corabb torná-lo mais humano. Se em determinado momento é descrito como “pure evil“, isso não chega a vilanizá-lo, pois faz referência unicamente a sua tendência a cometer o ato considerado mais hediondo pela narrativa da série – e ponto central de Memories of Ice – que é a traição. Dessa forma, sua posição durante o confronto em Y’ghatan é central para a formação de sua personalidade.

A batalha em si começa repetindo a estratégica de balancear as forças envolvidas, imediatamente desconstruindo um dos trunfos do exército malazano. Ao seguir os engenheiros que manejam explosivos e que vão ser os responsáveis por derrubar a muralha da cidade, percebe-se que eles se dividem em dois grupos: aqueles que não sabem muito bem o que estão fazendo e aqueles que de fato sabem, mas são insanos e suicidas. Assim, quando a batalha começa, o que se vê em Y’ghatan é um puro caos de sangue, tripas e muito fogo.

Erikson, então, encurta os pontos de vista, pulando de um para o outro rapidamente, causando uma desorientação que reflete o caos da situação. No mesmo sentido, ele alonga a duração do próprio capítulo – talvez o maior da série até então – para sufocar o leitor com o mesmo desespero dos personagens, sem oferecer um momento para respirar. Na descrição das fatalidades, a narrativa ressalta o caráter humano envolvido, independentemente do lado do conflito: um soldado malazano morre pensando no que falhou com a mãe, sofrendo uma espécie de regressão até um estado infantil, e um fanático de Leoman, quando esfaqueado, profere o nome de uma mulher em angústia, o que ainda enche sua algoz de tristeza.

Contudo – e esse é um preço pela batalha se dar no início do romance – vários personagens pequenos que são abatidos não tiveram o desenvolvimento adequado até então e se confundem uns com os outros em personalidade. Entretanto, para compensar, a última parte do capítulo – focada em uma lenta e excruciante fuga – permite que vários personagens importantes tenham momentos mais íntimos de desenvolvimento, com destaque para a breve resposta “A welcome gift” de certo personagem, que completa seu arco narrativo nesse momento. Além disso, nesse ponto a narrativa ainda discute temas caros à série, presenteando o leitor com passagens sobre compaixão (“Compassion existed when and only when one could step outside oneself, to suddenly see the bars inside the cage”), e apresenta excelentes metáforas como a do parto que ocorre no final, marcando o nascimento não de uma pessoa, mas de um grupo. Isso tudo apenas no primeiro ponto de virada do livro.

A trama de outros personagens é menos movimentada, mas não por isso menos complexa. A viagem de Herboric, por exemplo, espelha a futilidade da ocorrida em Deadhouse Gates, e seus novos companheiros são cada um assombrados por um passado específico: Cutter pela sensação de abandono e culpa devido a ter se afastado da mulher que ama, Felisin pelo legado da Sha’ik que avança sobre ela, e Scillara – que se revela o membro mais perspicaz e empático do grupo – pelo fruto do estupro que sofreu. Todos fadados a enfrentar os mesmos problemas: a indiferença de Herboric continua pondo aqueles próximos a ele em perigo, a culpa de Cutter se reforça diante de mais situações de impotência, Felisin vai repetindo os passos de sua antecessora e Scillara continua tendo que enfrentar uma opressão masculina incessante. O romance até chega a tocar em assuntos como aborto, mesmo que indiretamente ao debater sobre adoção. Um homem, por exemplo, afirma ser quase  desumano separar-se do filho voluntariamente e tem sua hipocrisia questionada por outro em uma resposta cuja extensão lhe parece escapar: “How old do they have to get before you lose all sympathy for them?”. Assim, quando o primeiro reafirma que sua preocupação é a defesa à vida, o contra-argumento vem igualmente contundente: “No it isn’t. Your obsession is with propriety. Your version of it, to which everyone else must bend a knee. Only, Scillara’s not impressed. She’s too smart to be impressed”. Scillara não deixa de ter voz, porém, contextualizando a discussão no tema do livro ao apontar que convicção torna-se uma ferramenta de opressão quando inexorável.

Mappo é outro que encarna o título da obra, buscando recuperar as memórias de Icarium em meio aos corpos que ele deixou. O trell precisa enfrentar as consequências de auxiliar seu companheiro – com cuja relação flerta com o sexual (“Would that you were a woman”) – a alcançar um objetivo que pode destruí-lo, sendo extremamente apropriado, portanto, que o nome de Icarium faça referência ao do mito de Ícarus, pois o objetivo do personagem constitui sua própria ruína:  em certo momento, o personagem chega a voar até suas memórias.

Já com Karsa Orlong, Erikson continua demonstrando uma capacidade ímpar de fazer o desenvolvimento de um personagem surgir em sua forma de falar. Os diálogos de Karsa são únicos, revelando sua evolução por meio da união de diversos traços, como sua nova consciência da própria cultura (“It is blood-oil that drives a Teblor warrior to rape. I have none.”), os resquícios da literalidade de pensamento com qual foi criado (“I shall, although it is not made of wood, and so it should be called Inn of the Brick”), e as amostras de perspicácia política (“Better is never what you think it is”). O personagem se vê como um salvador e justiceiro, distinguindo-se diretamente dos antagonistas da série por enxergar valor na dúvida e na crítica, entendendo a convenção, a certeza e a fé como prisões. Todavia, a impulsividade que lhe era estimulada agora gera um preço terrível, acorrentando-o a promessas e desafios que podem ir além de sua capacidade.

Tematicamente ambiciosa, a narrativa também penetra em discussões religiosas, opondo-se a qualquer fé que restrinja o pensamento crítico, colocando suas normas e interpretações como sagradas e invioláveis: seu foco é sempre apontar como a convicção, até nos elementos mais puros, limita e aprisiona. A dúvida, em oposição, liberta, permitindo que as portas para empatia estejam sempre abertas ao jamais negar de antemão a perspectiva do outro. No mesmo sentido, até mesmo o monoteísmo é posto em xeque, devido a sua limitação absoluta inerente: “The existence of many gods conveys true complexity of mortal life. Conversely, the assertion of but one god leads to a denial of complexity, and encourages the need to make the world simple. Not the fault of the god, but a crime committed by its believers”.

A narrativa de The Bonehunters disseca também as possíveis consequências sociais negativas de se acreditar em um paraíso, afirmando como a promessa de um pós-vida positivo pode funcionar como uma ferramenta de controle político ao estimular uma postura conformativa quanto à opressão, dificultando que uma mudança no mundo real seja efetivada: “There is something profoundly cynical, my friends, in the notion of paradise after death. The lure is evasion. The promise is excusative. One need not accept responsibility for the world as it is, and by extension, one need do nothing about it. To strive for change, for true goodness in this mortal world, one must acknowledge and accept, within one’s own soul, that this mortal reality has purpose in itself, that its greatest value is not for us, but for our children and their children. To view life as but a quick passage along a foul, tortured path– made foul and tortured by our own indifference– is to excuse all manner of misery and depravity, and to exact cruel punishment upon the innocent lives to come”.

Os deuses desempenham papel fundamental no romance, sendo constantemente associados a aranhas, prendendo os mortais em suas teias de maquinações políticas. Nesse campo, é apropriado que seja Cotillion quem receba o maior destaque, afinal é a única divindade que age diretamente para resolver as injustiças que observa. Ele nunca esconde que manipula e joga com os seres humanos, mas traz uma carga de empatia particular, como prova a gentileza de, em uma atitude proativa, informar a Apsalar sobre o que sabe sobre Crokus. Como Paran expõe em determinando momento, são os deuses que alegam compaixão, e ainda assim se mantêm isentos, que mais precisam responder pelas injustiças do mundo – uma crítica que atinge até um dos personagens mais interessantes de Midnight Tides.

Por fim, se o clímax final do romance não é maior em escopo que a batalha em Y’ghatan, ele sem dúvidas acerta em ser ainda mais tematicamente contundente.  Ele é desconstrutivista em sua maior parte, como em uma diálogo da Imperatriz que relativiza a História, apontando como ela não tem caráter factual, mas narrativo: a História ao ser contada é discurso e, assim, em sua confecção, expressa uma ideologia que parece a verdade. Dessa forma,  interpretações das mais basilares podem ser sempre revisadas quando inconvenientes, o que pode ser benéfico ou culminar na repetição de erros terríveis e na construção de discursos de ódio. Todavia, o confronto que ocorre consegue encontrar um lado otimista ao ser entrecortado por uma melodia especial: uma música que homenageia figuras de livros anteriores, cantadas de volta para mostrar que, se o passado prenuncia tragédias, também prevê algumas conquistas.

Em determinado momento do romance, Karsa encontra um povo que chama o passado de “Frozen Time”. É uma metáfora perfeita, pois ao mesmo tempo em que coloca o passado como um tempo inicialmente congelado, travado, também assume que basta um pouco de calor para trazê-lo de volta. Em The Bonehunters, a História não permanece meramente como um registro, inquestionável e estática. Ela significa mais que um aviso, mas um augúrio: não basta um exercício de precaução por parte dos personagens, mas um enfrentamento contínuo para – talvez – evitar sua repetição.

por Rodrigo Lopes C. O. de Azevedo.

28 de abril de 2018.

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Rodrigo Lopes C. O. de Azevedo


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