Jogador Número 1.
Sumário
Genero: F. CientíficaJogador Número 1, infelizmente, acaba sendo devorado pela própria abordagem de sua narrativa, falhando em desenvolver sua premissa, seus personagens, seus temas e seu universo, perdendo-se em meio às suas infindáveis referências.
Jogador Número 1, ficção científica escrita por Ernest Cline, aposta na vastidão do universo geek para compor a base de sua narrativa. O romance, contudo, é marcado por personagens unidimensionais e uma história maçante e aborrecida, não conseguindo entregar nada além de referências glorificadas.
A trama de Jogador Número 1 transcorre em uma sociedade decrépita, dominada por megacorporações, onde fome, guerra, doenças e mudanças climáticas terríveis são elementos tão cotidianos que sua presença nos noticiários tornou-se banal. Ou seja, basicamente hoje em dia, só que agravado. Nesse cenário, a via de escape das pessoas é digital: o chamado “Oasis” é um software de realidade virtual gratuito de proporções inimagináveis que permite que qualquer um se torne outra pessoa, viva aventuras e faça o que bem entender, compartilhando o mesmo universo infinito com todos os outros jogadores. O protagonista, Wade Watts, é um garoto pobre e órfão, que vive na casa de uma tia que não o suporta. A única parte boa de seu dia é ir para o Oasis, onde participa de uma caça mundial, pois quando o criador do jogo, James Hallyday, morreu, ele deixou sua fortuna e o controle da empresa para a primeira pessoa que conseguir resolver seus enigmas e adquirir três chaves no universo de Oasis. Para isso, essa pessoa tem que compartilhar da mesma obsessão que ele: a cultura geek dos anos 80.
Afirmar que o romance é repleto de referências a jogos de videogame, gibis, animes, filmes, músicas, D&D e o que mais funcionava como entretenimento na época, é um eufemismo: essas referências compõem o alicerce da narrativa, onipresentes até o final. Os personagens discutem os deméritos de O Feitiço de Áquila, jogam vários títulos do Atari, transformam-se no Ultraman, navegam em uma Delorean, fazem homenagem a Vonnegut, e pedem a mesma bebida favorita do protagonista de Highlander quando visitam um bar. As referências fazem parte da linguagem deles, que muitas vezes disputam quem sabe o detalhe mais obscuro até do manual de algum videogame antigo.
Essa mesma postura é adotada na construção das descrições no livro, que, narrado em primeira pessoa, reflete a obsessão do protagonista pelo tema. Assim, elas surgem quase como uma ostentação velada do narrador, que não evita saturar o leitor com suas homenagens e menções à cultura geek, inserindo às vezes quatro ou cinco por parágrafo. Trechos como este são comuns: “Quando cheguei ao bar, pedi uma Pan-Galactic Gargle Blaster para a garçonete Klingon que atendia ao balcão, e virei metade uma vez. Então sorri quando R2 começou outro clássico dos anos 1980. – “Union of the Snake” – eu disse, por força de hábito. – Duran Duran, 1983”.
A narrativa, entretanto, não consegue sustentar essa abordagem por muito tempo ao cometer um erro fatal: ela transmite a obsessão do protagonista, mas não sua paixão. Em outras palavras, ela deixa clara a importância daquele universo para Wade, que praticamente respira os anos 80, mas falha em mostrar por que essa época gera tamanha fascinação no garoto. É uma questão de qualidade, não de quantidade.
As discussões sobre gibis, jogos e filmes, por exemplo, apesar de constantes, são superficiais. Um bom exemplo é o debate que Wade trava com seu amigo Aech sobre Feitiço de Áquila: o protagonista se resume a dizer que o filme é “bom” e “clássico”, apontando os outros trabalhos do diretor, enquanto Aech acusa o longa de ser “chato” e “de mulher”. Não se espera discussões complexas sobre fotografia, desenho de som e ângulos de câmera, mas algo menos superficial era fundamental para a cena ter funcionado. Afinal, quanto mais se gosta de um assunto, mais se procura saber sobre ele, e a discussão entre Wade e Aech – que ainda consegue ser uma das maiores e mais complexas do livro – não ultrapassa o nível de dois garotos com acesso ao IMDB. Eles podem até ter informação, mas definitivamente não demonstram amar o assunto.
No mesmo sentido, nos instantes em que a habilidade de Wade de resolver os desafios e enigmas da caça de Halliday vai ser descrita, ela surge igualmente rasa. Em determinada cena, o garoto precisa bater o recorde mundial de Pac-Man. Ele, então, narra como leu diversas estratégias e estudou vários jogadores famosos para ganhar, mas nunca entra de fato nas estratégias em si. Ou seja, a narrativa é enfática em dizer que Wade é bom, mas nunca chega de fato a mostrar isso.
Como personagem, Wade funciona como um símbolo dos problemas que acometem o romance, mostrando-se vazio quando desprovido de seu revestimento geek. O protagonista é apenas um adolescente cheio de hormônios com conhecimento enciclopédico sobre a década de 80 e comportamento consideravelmente machista, ao ponto de, após ser rejeitado por uma garota que ele deseja que seja “só sua”, sentir a necessidade de substituí-la por uma boneca sexual robótica, o que basicamente mostra como ele enxerga a menina.
Ideologicamente, o garoto pensa apenas o suficiente para opor-se aos vilões, uma empresa que planeja ganhar o concurso de Halliday para passar a cobrar mensalidade pelo acesso ao Oasis, que até então somente gera lucro por microtransações. Wade defende que isso elitizaria o programa, retirando o que ainda resta de escapismo para as massas. Além disso, condena a proposta da empresa de terminar com o anonimato no Oasis, afirmando que se trata de algo fundamental para que pessoas inseguras consigam se expressar. O romance nunca chega a debater esses assuntos, colocando Wade como certo e a empresa como errada, desperdiçando o potencial do tema: o problema do anonimato proporcionar que uma pessoa pratique bullying ou propague discurso de ódio sem medo de ser responsabilizada por seus atos, por exemplo, sequer é mencionado. Wade é bom e heroico e a a empresa é má e vilanesca. Simples assim.
O meio geek também é romantizado sem ressalvas: grupos nerds surgem imediatamente acolhedores aos seus iguais, ser geek parece automaticamente significar ser hacker, e o sofrimento do grupo é exaltado constantemente: “Veja que pensadores, inventores e cientistas costumam ser geeks, e geeks têm mais dificuldade para fazer sexo, mais que qualquer pessoa”.
A narrativa sequer consegue desenvolver apropriadamente o panorama político de seu universo. O Oasis, por exemplo, oferece uma educação gratuita de altíssima qualidade para qualquer um, havendo até um programa social que entrega gratuitamente o hardware que permite o acesso a ele. Tal elemento seria suficiente para chacoalhar o status quo e diminuir a desigualdade social, mas tais consequências parecem nunca ter vindo para o mundo de Wade e a razão disso também não é mencionada.
Já a caça em si se revela formulaica e pouco imaginativa, com enigmas que variam entre o óbvio demais – o primeiro –, e o obtuso demais – o segundo –, proporcionando sequências de ação que só empolgam quem reconhece as referências e unicamente devido a elas. São vários os motivos para isso: os personagens são desinteressantes, a ação em sua gigantesca parte transcorre no universo digital em que ninguém corre perigo real, e o narrador, para variar, está mais preocupado em apontar que conhece o nome de todos os elementos envolvidos na batalha do que em narrá-la, sempre travando o ritmo com suas explicações.
Por fim, há o problema da inconsistência da voz do narrador no prólogo, que, apesar de ser a de Wade, é diferente da empregada no restante dos capítulos: apenas no prólogo ela usa notas de rodapé para apontar as inúmeras referências no texto, relegando-as a uma posição secundária, sem importância, que elas definitivamente não assumem no restante da narrativa. Seria possível argumentar que a mudança simbolizaria o fim do arco narrativo do personagem, refletindo o fim de seu comportamento obsessivo. Contudo, o restante do livro é narrado não enquanto a ação acontece, mas no passado. Ou seja, o Wade que escreve o prólogo é o mesmo que escreve o resto do livro, embora sua voz difira nesses dois momentos sem qualquer justificativa.
Quanto à versão brasileira, é certo que a tradução foi um trabalho hercúleo, mas os deslizes são visíveis: algumas referências baseadas em trocadilhos não são adaptadas, levando a diálogos sem sentido, como a famosa frase de Aperte os cintos, o piloto sumiu “Não me chame de Shirley” vir como resposta a uma pergunta desprovida de qualquer palavra que possa ser confundida com Shirley, possivelmente causando enorme confusão no leitor que não conhece o filme. Enquanto isso, certos termos permanecem em inglês mesmo com tradução oficial (Middle-Earth, em vez de Terra-Média) e alguns específicos da área de games são traduzidos de forma estranha, como cutscene virar cena cortada em vez de cena de corte: ela tem esse nome porque quando a cena surge no jogo ela corta a jogabilidade. Ela não é cortada por nada. Além disso, a linguagem dos personagens foi amenizada, o que é sempre soa artificial: um “Blow me, Aech”, que poderia equivaler a um “Não fode, Aech”, vira… “Sai fora, Aech”.
Jogador Número 1, infelizmente, acaba sendo devorado pela própria abordagem de sua narrativa, falhando em desenvolver sua premissa, seus personagens, seus temas e seu universo, perdendo-se em meio às suas infindáveis referências.
por Rodrigo Lopes C. O. de Azevedo.
01 de março de 2018.
Compre:
. Amazon Brasil.