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Mares de Sangue.

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Posted 09/08/2018 by in Fantasia
Mares de Sangue - Capa do Livro

Rating

Nota:
 
 
 
 
 

3/ 5

Sumário

Genero:
 
Autor:
 
Editora:
 
Idioma Original:
 
Título: Mares de Sangue.
 
Título Original: Red seas under red skies.
 
Tradução: Alves Calado.
 
Edição: 2014.
 
Páginas: 512.
 
Capa: Benjamin Carré / Bragelonne
 
Resumo:

Mares de Sangue é uma sequência inferior a As Mentiras de Locke Lamora, contando com a mesma dupla sensacional de personagens principais, mas também com uma estrutura narrativa equivocada e um narrador que trabalha contra o mistério da trama.

by Rodrigo Lopes C. O. de Azevedo
Full Article

—> Os exemplos estarão em inglês, por causa da leitura ter sido da versão americana.

Mares de Sangue, segundo volume da série Nobres Vigaristas, dá continuidade ao desenvolvimento de seus dois personagens principais, Locke Lamora e Jean Tannen, focando em sua conturbada, mas calorosa amizade. No entanto, a mudança de direção temática para pirataria não recebe a mesma atenção, sendo prejudicada por uma estrutura narrativa problemática.

A trama do romance segue os preparativos do próximo grande golpe planejado pela dupla de vigaristas: roubar Requin, o maior mafioso da cidade de Tal Verrar, que organiza com punho de ferro um cassino em uma torre sinistra. No entanto, mais forças da cidade possuem outros planos para Lamora e Tannen, levando-os a partir em uma viagem em alto-mar e engajar com piratas.

A frase que abre o livro já explicita bem seus elementos principais: “Locke Lamora stood on the pier in Tal Verrar with the hot wind of a burning ship at his back and the cold bite of a loaded crossbow’s bolt at his neck.”, situando o protagonista num cenário específico, prevendo a temática de pirataria com o navio em chamas e informando sobre o perigo iminente com a ameaça da besta. Poucas páginas depois, o próprio corpo de Locke é comparado às partes de uma embarcação (“His ribs stood out beneath his pale skin like the hull timbers of an unfinished ship”), tornando a imagem anterior ainda mais agourenta. Para piorar a situação do personagem, o romance também se inicia com uma possível traição de Jean, marcando um terrível golpe para ele.

O tema de Mares de Sangue certamente é a relação entre Lamora e Tannen, desenvolvendo sua união e mostrando seus diversos desentendimentos. No início, por exemplo, quando o protagonista está amargurado devido aos eventos de As Mentiras de Locke Lamora, Jean não mede esforços para conseguir revitalizar seu companheiro e fazê-lo recobrar a vontade de viver. O próprio Locke explicita a importância vital de Jean em sua vida: “Gods help me, I will never be better off without you.” As desavenças entre eles ganham destaque, portanto, por servirem como dicas para a motivação da traição, da mesma forma com que sua amizade continua sendo considerada uma fragilidade num submundo perigoso e inescrupuloso que não hesita em usá-la contra eles: “If either of you causes any trouble, I’m instructed to punish the other one”, os ameaçam em determinado instante. Por outro lado, os laços que os prendem servem como um contraponto positivo, visto que um funciona como âncora para o outro em meio a tanta atrocidade. Já seus insultos divertem pela frequência e pela criatividade: “You might still be a lying, cheating, low-down, greedy, grasping, conniving, pocket-picking son of a bitch”.

Como o título original do romance revela, Lynch continua trabalhando com a simbologia do vermelho como sinalizador de perigo: “Red seas under red skies” aponta não uma, mas duas fontes de perigo, refletindo a estrutura do livro. Pois, assim que os preparativos para o golpe em Requin estão sendo finalizados, a dupla é sequestrada e feita refém por um inescrupuloso político, que representa o segundo obstáculo que precisam superar. A própria cidade de Tal Verrar também trabalha com essa conexão com cores, sendo chamada de A Rosa dos Deuses, enquanto as perigosas vespas que os dois encontram em determinado momento possuem uma coloração avermelhada brilhante e o próprio navio que as transportam para Tal Verrar, e no qual Locke e Jean eventualmente partem para o alto-mar, completa o aviso, chamando-se o Mensageiro Vermelho.

Locke é um personagem curioso. Apesar de roubar e aplicar golpes, ele é gentil, torce sempre para o mais fraco e tem um senso de justiça social aguçado. A narrativa, entretanto, pesa a mão nesse último elemento, inserindo uma cena absurda, digna da série de filmes The Purge, quando o garoto se depara com nobres e comerciantes ricos jogando um jogo de tabuleiro com peças humanas (obviamente composta por pessoas miseráveis, que não ter onde dormir e muito menos dinheiro para comer), que aceitam ser humilhadas e torturadas física e psicologicamente sempre que são sacrificadas no jogo: “At the Amusement War they can do exactly what they want to do to the poor folk and the simple folk. Things forbidden elsewhere. All you’re seeing is what they look like when they stop pretending they give a damn about anything.” Tornando a cena ainda mais exagerada em sua alegoria política, a violência social não somente é tratada de forma mundana, como também comercializada, com leilões entre os privilegiados para decidir quem terá o direito de escolher a punição adequada – leilão em que até crianças participam, estimuladas por seus pais vestidos em tons de vermelho e ouro. Esses mesmos personagens ganham até espaço para se justificar, apoiados em uma noção de meritocracia religiosa, afirmando que aquelas peças estão lá por culpa e inabilidade delas mesmas: “That’s life, under the gods, by the will of the gods. Perhaps if they’d prayed harder, or saved more, or been less thoughtless with what they had, they wouldn’t need to come crawling here for Saljesca’s charity. Seems only fair that she should require most of them to earn it”. Trata-se de um capítulo inspirado, mas graças ao seu exagero, na forma de um sadismo puro e sem controle, ele foge do tom do restante da narrativa.

Locke, contudo, apesar de se mostrar sagaz e inteligente em diversos momentos, revela aqui uma ingenuidade alarmante e até contraditória ao se surpreender com o óbvio de que as pessoas vieram para aquele jogo não pelo jogo em si, mas pela tortura: “Gods, Locke realized, barely any of them are here for the game at all. They’ve only come to see the defaults.” Para piorar, tal acontecimento é prontamente esquecido, não sendo mais mencionado na história, que prossegue como se nenhum jogo tivesse acontecido, mesmo com as promessas de retribuição do protagonista. Afinal, para Locke roubar não é uma simples atividade, mas uma religião, com direitos a mandamentos como proteger outros ladrões e fazer os ricos se lembrarem de que não são intocáveis. Para ele, roubar dos poderosos é uma questão de justiça divina por meio do equilíbrio de forças resultante, atacando a húbris dos ricos. 

Jean não é muito diferente de Locke em Mares de Sangue, compartilhando dos mesmos objetivos e atitudes políticas. Tannen apenas se difere por ser mais pragmático, enquanto Locke é mais emotivo, e paradoxalmente por encontrar eventualmente outras motivações além de seu grupo de ladrões para viver ao descobrir o amor de uma mulher.

Os vilões são bem desenvolvidos em sua simplicidade. Requin é marcado por sua brutalidade, como prova sua história de vingança, e Stragos, o homem que sequestra os dois, tem sua personalidade revelada metaforicamente por seu jardim falso que funciona como um relógio para impressionar suas visitas, sendo controlado por funcionários escondidos: “A clockwork garden for my clockwork river. There’s not a real plant in here. It’s wood and clay and wire and silk; paint and dye and alchemy. All of it engineered to my design; it took the artificers and their assistants six years to construct it all”.

Caso o livro tivesse se focado nos dois, ele provavelmente teria se mantido no nível do primeiro, mas infelizmente, na metade do romance, Stragos manda Locke e Jean para o alto-mar para se tornarem piratas. É um evento bem problemático, pois ocorre muito tarde na narrativa. Ela não era sobre pirataria, mas sobre o golpe em Requin e a tentativa de sobreviver Stragos. Essas tramas não são concluídas quando eles viajam, mas pausadas perto de seu clímax, quase como um coito interrompido. Os muitos personagens que são apresentados a seguir ainda têm poucas páginas para serem apresentados corretamente e se a capitã pirata e sua imediata, por serem a dupla principal dessa seção, ganham destaque, isso significa que o resto da tripulação mal é mencionado e os nomes de cada um praticamente se confundem uns com os outros, diminuindo a força de traições e outras reviravoltas. O próprio clímax dessa parte, uma batalha naval, tem como antagonista um personagem com pouquíssimas características marcantes e quase nenhuma personalidade, tornando-o desinteressante, o que diminui o impacto do embate, que também sofre por tentar usar como surpresa criaturas que não foram previamente preparadas – uma pena, considerando que as vespas podiam ter feito um retorno triunfal.

Além disso, há o fato de que, por boa parte do livro, Locke e Jean deixam de ser os personagens ativos habituais e somente reagem aos planos de outras pessoas. Isso reflete sua impotência diante dos acontecimentos – eles perdem o controle sobre os eventos –, mas dura por tanto tempo que começa a diminuir a força dos personagens.

Outro problema do livro reside na escolha de um narrador onisciente que fica explicitando, por exemplo, quando Locke está sendo honesto, chegando a afirmar que determinado sorriso foi genuíno ou que ele não tinha um objetivo específico ao realizar certa ação, o que remove a ambiguidade do personagem, enfraquecendo-o. Em uma trama de suspense envolvendo traições e golpes, a ambiguidade teria sido um artifício eficiente para construir tensão e preparar terreno para reviravoltas, mas Lynch descarta essa opção ao escolher a voz de um narrador onisciente e seletivo. Assim, as revelações precisam ser preparadas em grande parte por omissão: o que o narrador escolhe não contar é a parte que irá guardar a chave para entender os verdadeiros planos dos personagens. Trata-se, portanto, de uma escolha que coloca o leitor na desvantagem, pois precisa trabalhar com menos informações do que, por exemplo, trabalharia no caso da ambiguidade.

A parte marítima também sofre com uma exposição exacerbada de informações náuticas, uma vez que Locke e Jean não detém esse conhecimento e precisam aprender. As explicações, então, tornam-se didáticas e constantes na metade do livro, justamente quando a trama teria se beneficiado de um ritmo acelerado. Em vez disso, trechos como esse são comuns: “The nose of your boat is called the bow, the ass is called the stern. Ain’t no right and left at sea. Right is starboard, left is larboard. Say right or left and you’re liable to get whipped. And remember, when you’re directing someone else, it’s the ship’s starboard and larboard you’re talking about, not your own”. Todavia, a subversão de algumas superstições é interessante, como a que afirma que não ter uma mulher a bordo traz má sorte, principalmente porque elas costumam ser oficiais muito competentes.

Por fim, o romance continua empregando a estrutura cíclica do primeiro volume: uma coisa surpreendente acontece, há um flashback com a explicação de tal coisa e aí volta para a coisa em si, para ela terminar de acontecer. Trata-se de uma estrutura que funciona melhor em filme, visto que a montagem rápida torna as idas e voltas mais interessantes do que uma narrativa em prosa.

Mares de Sangue é uma sequência inferior a As Mentiras de Locke Lamora, contando com a mesma dupla sensacional de personagens principais, mas também com uma estrutura narrativa equivocada e um narrador que trabalha contra o mistério da trama.

por Rodrigo Lopes C. O. de Azevedo.

08 de setembro de 2018.


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Rodrigo Lopes C. O. de Azevedo


2 Comments


  1.  

    Excelente resenha como sempre. Abs





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