Seu primeiro portal para notícias e críticas literárias!

 


Memories of Ice.

2
Posted 08/22/2016 by in Fantasia

Rating

Nota:
 
 
 
 
 

4/ 5

Sumário

Genero:
 
Autor:
 
Editora:
 
Idioma Original:
 
Título: Memories of Ice.
 
Título Original: Memories of Ice.
 
Tradução: Lido no original.
 
Edição: 2006.
 
Páginas: 926.
 
Capa: Steve Stone.
 
Resumo:

Memories of Ice mantém o padrão de excelência da série de fantasia de Steven Erikson, conseguindo a proeza de impressionar ainda mais o leitor com a escala e a complexidade da história contada. Assim, se ele tivesse sido um pouco mais lapidado, certamente teria se igualado a seu antecessor.

by Rodrigo Lopes C. O. de Azevedo
Full Article

Memories of Ice, terceiro volume da série The Malazan Book of the Fallen escrita por Steven Erikson, expande ainda mais o escopo da narrativa: se o livro não traz o mesmo cuidado com a exposição do universo fantástico que seus antecessores, ele compensa com a complexidade maior de suas tramas e arcos dramáticos.

A história de Memories of Ice volta para os principais personagens de Gardens of the Moon ao fim da campanha militar na cidade de Darujhistan. O sargento Whiskeyjack e o exército Malazan precisam se aliar a seus inimigos de longa data, liderados por Caladan Brood e Anomander Rake, para superar uma ameaça que afeta a todos: o avanço da Guerra Santa perpetrada pelo Panion Domin, uma seita religiosa guiada por um misterioso oráculo.

O Pannion Domin é um dos elementos mais interessantes da narrativa, sendo composto por indivíduos terríveis e representado por sua infantaria chamada Tenescowri: uma imensidão de indivíduos canibais, que se alimentam somente de suas vítimas e veneram mulheres que estupram soldados caídos em batalha. As cenas de guerra que envolvem os Tenescowri são pesadíssimas em tom, contendo descrições viscerais de determinados ataques. Erikson, porém, mostra empenho em não torná-los unidimensionais, contrastando a forma com que o grupo age com como ele é mencionado durante a narrativa: apesar dos Tenescowri basicamente funcionarem como uma horda zumbi, eles constantemente referidos como “uma massa de humanidade” nas descrições.

Aliás, há um padrão na composição da maior parte dos vilões em Memories of Ice: eles são sempre indivíduos cujo caráter é confeccionado por forças externas. Não é o caso de eles serem corrompidos pela sociedade – pois nunca aparecem bons –, mas de surgirem fadados à vilania pela ação dela. O conceito atribuído aos vilões é o de fatalismo: eles nunca tiveram a chance de assumir qualquer outro papel.

Além disso, os antagonistas também se mostram conscientes dos horrores que perpetram, sendo aterrorizados por eles. Erikson trabalha com a ideia de que ninguém se vê como um vilão e que aqueles poucos que o fazem tem suas almas partidas e quebradas.

Memories of Ice é um livro carregado de reflexões sobre a natureza humana e, se Deadhouse Gates era essencialmente pessimista, aqui a mensagem reflete bem mais o que há de melhor na humanidade. Um dos termos essenciais da história, por exemplo, é compaixão. Uma ideia e atitude que surge relacionada a diversos personagens e compõe inteiramente o arco narrativo de um mercenário chamado Itkovian– finalizado em um discurso belíssimo em mensagem e trágico em subtexto, por partir do pressuposto de que sua ideia é raramente compreendida pelas pessoas.

O livro é estruturado em volta de duas grandes cenas de batalha: os cercos às cidades de Capustan e Coral. A narrativa acompanha os preparativos para cada uma, introduzindo e desenvolvendo personagens novos, além de armar e resolver conflitos próprios para cada evento.

Na cidade de Capustan, por exemplo, o leitor é apresentado aos Grey Swords, um grupo de mercenários devotos ao deus da guerra Fener, que se destacam por sua hierarquia rígida e por sua lealdade inabalável perante seu patrono. Em contraposição a eles, posiciona-se o conselho local, composto por sacerdotes mascarados. Erikson estabelece um contraste fascinante entre essas duas forças pela quebra da expectativa: ambos querem proteger a cidade, mas são os mercenários e não os sacerdotes os que mais correspondem à vontade de seus deuses. O Conselho Mascarado é composto por sacerdotes representantes de cada uma das entidades, devidamente assinaladas em suas máscaras. Esses objetos, entretanto, funcionam com um mero disfarce, fazendo o povo acreditar que eles servem o divino, quando na verdade estão apenas preocupados com os próprios interesses.

Estabelecendo essas relações, Erikson aumenta a tensão para a batalha que os personagens sabem que é inevitável. Os Grey Swords não veem esperanças de vencer, mas são leais demais para fugir, o Conselho mais atrapalha do que ajuda devido a seus egos conflitantes e os Tenescowri pouco se importam com qualquer coisa, marchando rapidamente para devorar todo mundo.

Memories of Ice espanta pelo seu escopo e este não é alcançado apenas com a escala das batalhas, mas com a enorme gama de personagens – cada um com seu próprio arco narrativo – e temas discutidos.

Um dos pontos constantes da narrativa é a questão da maternidade. As figuras principais do prólogo são mães, imagem que é posteriormente representada pelas personagens da Mhybe e da Matron. Mhybe é a mãe de uma criança especial que consome sua vida enquanto cresce, e seu arco funciona como uma metáfora do esgotamento físico e emocional causado pela maternidade. Para ela, ser mãe não somente a privou de sua autonomia e de sua juventude, mas de toda sua vida. Ela sente-se furtada, drenada pela filha e sua frustração diante do ocorrido é exposta constantemente (“She has stolen my life!”), embora seu amor pela criança seja inquestionável. Seu maior problema, porém é o abandono que acredita sofrer: sua filha cresceu e a largou de lado, não necessitando mais dela. A mensagem é que há poucas dores maiores do que ser ignorado pelos filhos justamente quando se envelhece e precisa mais deles: o sentimento não é outro que não traição. Já a Matron representa um sofrimento ainda maior – a perda dos filhos para a morte – e sua dor e loucura supera até mesmo a da Mhybe.

Outro tema recorrente na narrativa é o drama envolvendo os T’lan Imass – raça de guerreiros imortais que jurou vingança eterna contra outra específica. Eles surgem como criaturas assustadoras feitas de ossos, mas volta e meia portam um semblante triste, devido a seu arrependimento quanto ao destino a que eles próprios se condenaram. É Whiskeyjack quem explica melhor a razão da dor dos T’lan Imass, ao defender que a guerra, apesar de tudo, não é um estado natural do indivíduo. Assim, o discurso de ódio só pode corroer a alma de quem o profere.

Indo para arcos narrativos mais pessoais, Ganoes Paran destaca-se pelo mesmo motivo que o fazia em Gardens of the Moon: a frustração pela sua impotência diante das ações dos deuses. No entanto, é o momento em que ele pensa sobre sua família que contém sua melhor reflexão no livro. O movimento da frase – que vai de heroísmo à vilania – ecoa os eventos e desenvolvimento de personagem do segundo volume, enquanto sugere um fim trágico para os envolvidos: “The Children of my parentes are, one and all, capable of virtually anything. We can survive. Perphaps we lack normal conscience, perphaps we are monsters in truth”.

O humor, por sua vez, volta com a presença de Kruppe e suas falas constituídas de palavras-chave contraditórias (“Innumerable suggestions of a specific nature, sir Warlord. So many that, when combined, they can only be seen or understood in the most general terms!). No entanto, Memories of Ice diferencia-se de seus antecessores por não depender exclusivamente de alívios cômicos para fazer humor. Sim, volta e meia, Kruppe faz uma mesa voar durante uma discussão, mas em muitos casos a graça advém de personagens sérios se verem no meio de situações absurdas, como o instante em que Quick Ben confessa à Whiskeyjack que sacrificou um bode ou aquele em que tenta conversar amigavelmente com um necromante logo após causar a explosão de parte da parede da casa do sujeito. Além disso, os Bridgeburners protagonizam vários momentos leves, em que discutem sobre coisas aleatórias e divertidas, como o possível interesse amoroso de um touro que aparenta segui-los.

Erikson também surpreende por não se perder na imensidão de arcos e tramas, sempre preparando inúmeras “pistas e recompensas” para o leitor mais atento. Algumas são mais sutis, como a ferida de um general do Pannion Domin, mas outras nem tanto, como a ferida de Whiskeyjack.

Aliás, Memories of Ice apresenta uma discussão interessante sobre confiança. A história é estruturada de forma com que boa parte dos conflitos entre os personagens principais advenha justamente da suspeita entre eles. No entanto, essa desconfiança é condenada pela narrativa, que a expõe como sendo, se às vezes compreensível, tola em última análise. Afinal, da mesma forma que a guerra não é um estado natural, a traição também não é. Otimista em sua natureza, a história do livro defende que esperar ser traído é, além de complicado, desastroso para a própria alma, que se corrompe pelo medo. É justamente por essa razão que a traição configura-se um ato tão imperdoável, pois sua mera existência quebra o pacto implícito estabelecido entre as partes pela ordem natural das relações sociais: “There can be no true rendition of betrayal for the moment hides within itself, sudden, delivering such comprehension that one would surrender his or her soul to deny all that has come to pass”.

É uma pena, portanto, atestar que é neste volume que Erikson menos confia na capacidade do leitor de compreender o que está acontecendo. Se Garden of the Moon era até excessivo em sua obscuridade e Deadhouse Gates atingia o equilíbrio perfeito em seu aspecto expositivo, Memories of Ice consegue superar até mesmo Night of Knives de Esslemont, entregando inúmeros e enormes blocos de informação (“infodumps”) ao leitor.

A cena em que Whiskeyjack e seu comandante discutem abertamente e em detalhes seus esquemas é pouco característico de Erikson, mas infelizmente comum em Memories of Ice. Aqui, personagens frequentemente revelam suas intenções ou a de outros, explicam abertamente o significado de eventos que são de pouca importância para eles e até usam apostos explicativos gratuitamente (“And that includes my father, Draconus”: o nome do pai é destinado exclusivamente ao leitor, já que o interlocutor na conversa já sabe quem é o pai do falante e não precisa ser lembrado disso). O livro conta até com o flashback de um personagem, recurso nunca antes utilizado na narrativa de Erikson.

Por fim, é importante notar que este terceiro livro revela um problema macroestrutural de toda a série: o principal vilão é exposto somente aqui, deixando os dois primeiros volumes um pouco desconectados do restante da história.

É certo, porém, que Memories of Ice mantém o padrão de excelência da série de fantasia de Steven Erikson, conseguindo a proeza de impressionar ainda mais o leitor com a escala e a complexidade da história contada.  Assim, se ele tivesse sido um pouco mais lapidado,  certamente teria se igualado a seu antecessor.

por Rodrigo Lopes C. O. de Azevedo.

22 de agosto de 2016.


About the Author

Rodrigo Lopes C. O. de Azevedo


2 Comments


  1.  
    Hoxton Hoxworth

    “fazendo as pessoas acreditarem que eles servem o divino, quando na verdade estão apenas preocupados com os próprios interesses.” Isso sempre me deixa frustrado em livros de fantasia. NUNCA fazem um personagem religioso de verdade que visa o bem maior e pensa estar, ou está de fato fazendo a coisa certa. É um dos clichês que eu não gosto. Clichês viram clichês por serem bons e funcionarem, só que esse é previsível 100% das vezes. Toda vez que um livro introduz um religioso tu pode anotar que ele vai ser só um homem ganancioso visando interesses próprios. Seria interessante ver algum dia uma história onde o antagonista seja religioso e esteja fazendo a coisa certa, e só seja o antagonista porque sua visão de mundo bate de frente com o(s) protagonista(s). Protagonista(s) que não são uma(s) pessoa(s) boa(s) desde o começo, e a forma com que a história é narrada faça o leitor comprar o lado dele(s), mas com análise profunda sem apego possa ser possível notar quem de fato estava certo.
    No mais, eu me interesso a anos por essa franquia de livros, porém nunca consegui achar em lugar nenhum pra comprar, salvo na internet em forma de mídia digital. Um dia eu ainda quero devorar todos esses livros. Só ouço coisas boas a respeito.




    •  
      Rodrigo Lopes C. O. de Azevedo

      Um personagem que foge um pouco dessa regra é o monge Philip em Os Pilares da Terra: embora ele não seja um dos vilões (o bispo Walleran, que ocupa esse posto, cai de fato no clichê que mencionou), sua posição narrativa muda em diversos momentos, chegando a ser de antagonista para determinados personagens em determinados pontos do livro. E Philip é uma boa pessoa, o que torna as consequências de suas posições políticas e ideológicas mais interessantes. Os Pilares da Terra, porém, não pertence ao gênero fantasia, sendo um romance histórico.





Deixe uma resposta para Hoxton HoxworthCancelar resposta