A Lança do Deserto.
Sumário
Genero: FantasiaPara aqueles que não sabem o que é cultura de estupro, A Lança do Deserto exemplifica.
Se o primeiro volume de O Ciclo das Trevas pareceu ter sido escrito por dois autores, A Lança do Deserto certamente foi elaborado pelo pior da dupla: o romance de fantasia de Peter V. Brett dá prosseguimento ao processo de descaracterização de personagens iniciado na metade final de O Protegido, além de trazer uma estrutura narrativa desconexa.
O protagonista da história passa a ser Jardir, um guerreiro do deserto que, após conseguir uma lança mágica, decide proclamar-se o líder sagrado de seu povo e deflagrar uma guerra santa. Enquanto isso, a ervanária Leesha e o menestrel Rojer continuam seus preparativos para armar sua vila contra os demônios da noite; o mensageiro Arlen tenta alertar os povos do norte sobre a ameaça de Jardir; e a garota Renna precisa se proteger dos avanços sexuais de seu pai.
O foco inicial da narrativa está na ascensão de Jardir no reino de Krasia. Trata-se da melhor parte do livro graças à vívida caracterização do povo do deserto e às problematizações suscitadas por sua cultura: o guerreiro vive em uma sociedade patriarcal eminentemente machista, onde ter filhas é uma maldição e os meninos aprendem a se tornar os respectivos “homens” de suas famílias. Por serem os únicos naquele mundo a enfrentarem abertamente os demônios que saem da terra todas as noites, os krasianos valorizam a força acima de tudo, chegando a ver estupro como uma forma de prova de superioridade física. O autor une várias características de povos do oriente (Krasia é basicamente Ásia com duas consoantes adicionais), mas sua mão pesada em alguns momentos – virgens esperam no paraíso aqueles que morrem em batalha – pode fazer o resultado final beirar o estereótipo.
Alguns personagens nessa parte merecem destaque: a primeira esposa de Jardir, por exemplo, surge como uma espécie Lady Macbeth, empurrando o guerreiro a trair seus valores em busca de glória e do título de Salvador que ele tanto quer. Em determinado momento, o personagem até reflete “Será que eu estou fadado a sempre ter sucesso sem orgulho?”, trazendo à tona a ideia de destino, representada pelas profecias que sua esposa faz – ela dispensa as bruxas da peça de Shakespeare, assumindo ambas as funções. Já o mercador Abban serve como uma espécie de bússola moral, incentivando Jardir constantemente a expandir sua visão de mundo e acolhendo outras perspectivas, impedindo-o de se tornar uma fanático religioso.
A conquista de Jardir das outras terras, sob o pretexto de unir todos os povos para combater os demônios, é estabelecida como a principal promessa para a história de A Lança do Deserto no final do primeiro ato. O segundo, então, volta ao ponto de vista dos personagens do volume anterior.
Nessa parte do livro, não é Jardir e nem os demônios os principais antagonistas, mas os homens e sua cultura machista. O autor, porém, falha miseravelmente ao trabalhar com o tema, juntando tantos simbolismos e diálogos contraditórios que consegue a proeza de piorar o tratamento que conferiu ao estupro de uma personagem em O Protegido.
A mãe de Leesha, por exemplo, continua propagando sua visão desumana de mundo, afirmando que estupros tem um lado positivo: um estupro significa que alguém desejou a mulher estuprada e, assim, a vítima deveria se sentir, quanto a esse ponto, agradecida. Um absurdo imenso que, pela personagem assumir a clara função de antagonista, teria sido criticado na narrativa se a própria Leesha, que lutou com bravura para ser independente em boa parte do livro anterior, não acabasse concordando com a visão de mundo geral da mãe, considerando-a cruel, mas – pasmem – realista e pragmática. Para aqueles que não sabem o que é cultura de estupro, A Lança do Deserto exemplifica.
A caracterização de Leesha é tão problemática que chega a se tornar ofensiva. Em determinado momento, ela se reprime por ter drogado um sujeito que tentara estuprá-la todas as noites durante uma viagem e fica com pena quando o mesmo se desculpa por ter brochado. Na mesma cena, ela cogita fazer sexo com o cara e ainda reflete como cozinhar para um homem é bom. É uma aglomeração de situações, diálogos e símbolos inaceitável demais, principalmente considerando que, novamente, a ervanária foi estabelecida como alguém que deveria combater essas barbaridades.
Quando o leitor ainda está tentando se recuperar dessas cenas, ele é então apresentado à menina Renna e percebe que o livro não tem salvação: o arco narrativo da garota envolve ela ser estuprada diariamente pelo próprio pai. O autor não somente parece incapaz de introduzir um ponto de vista feminino em sua série sem apelar para estupro, como, em ambos os casos, também usa o estupro como artifício narrativo para aproximar romanticamente ambas as vítimas de um mesmo homem.
Aliás, tem que se verificar se tem mais tentativas de estupro do que combates com demônios em A Lança do Deserto, visto que em Krasia a prática rola solta até mesmo com garotos. No entanto, essa “igualdade” de tratamento entre sexos não funciona, pois não muda o fato de que a atitude do homem que sofre o estupro é diametralmente oposta a de Renna: enquanto ele imediatamente planeja sua vingança e treina arduamente para realizá-la, a garota simplesmente aceita passivamente sua sina, esperando que algum príncipe encantado venha salvá-la (“Ela ainda observava a estrada noite após noite, mas agora mirando a oeste, rezando para ver Cobie Pescador a caminho, para buscá-la”).
Renna é uma personagem terrivelmente passiva, que se mostra incapaz até mesmo de se defender em um tribunal quando é julgada por seus vizinhos. Seu arco narrativo é tremendamente artificial e contraditório, visto que ela só se posiciona contra os crimes de sua vila quando justamente um homem abre seus olhos.
O autor constrói suas personagens femininas de apenas três formas: ou elas manipulam os homens com sua inteligência, ou com seu órgão genital ou com os dois. Em A Lança do Deserto o feminino é basicamente limitado a sua relação com perigo e sexo: não é à toa que a primeira esposa de Jardir remete de volta à figura de Eva, oferecendo o fruto proibido e corrompendo o homem. Não é à toa que uma das primeiras descrições dos demônios no livro é de que suas longas garras parecem com as unhas de uma mulher. Não é à toa que, no instante em que uma mulher dilacera vários demônios, sua sensação na hora é descrita como sendo de lascívia e não relativa a honra ou glória. Não é à toa que Elona diz O poder de uma mulher está entre suas pernas e só uma tola escolhe não tirar proveito disso e Leesha ainda fica sem argumentos contrários por achar que as palavras da mãe tinha algo de autêntico.
As tentativas do autor de oferecer um retrato positivo do feminino são sabotadas pelo próprio contexto em que surgem. O trecho “Mas você não é meu pai nem meu marido. E, mesmo se fosse, o corpo é meu e eu faço com ele o que quiser”, por exemplo, é proferido no meio de uma discussão em que a personagem em questão está se refestelando em magia negra e até mesmo sabe que está fazendo algo errado – infantilizando o próprio argumento, que acaba soando mais birrento que qualquer outra coisa, como se ela estivesse se recusando a perder em um jogo e batesse no tabuleiro, gritando “O jogo é meu e eu faço com ele o que eu quiser”.
Da mesma forma, de nada adianta Jardir constatar que as mulheres que encontra “são fortes” se, nos instantes em que um príncipe demônio analisa seus inimigos, a criatura conclui que a mente de Arlen e Jardir são muito resistentes e impenetráveis, mas as das fêmeas ao seu redor são presas frágeis. Não importa que eles estejam protegidos cada um com seu amuleto mágico próprio, eles poderiam estar protegidos por pirulitos mágicos. Quando todos os personagens possuídos são mulheres (e no total são quatro, se não me engano), há um simbolismo inquestionável presente na situação.
O momento em que aparece uma reflexão de que mulheres não são escrotas por se recusarem a ficar com um homem é praticamente mágico, constituindo-se um suspiro de maturidade em um livro tão carente dela.
Prosseguindo para o desenvolvimento dos personagens masculinos que voltam de O Protegido, Arlen, que antes era o protagonista, aqui se resume a repetir dezenas de vezes que não é o Salvador de todos – tal afirmação é quase a totalidade de seus diálogos até a metade do romance –, enquanto Rojer permanece tão descartável e irrelevante quanto era antes.
Já o desfecho do livro peca pelo anticlímax, uma vez que, em vez de tratar da guerra santa de Jardir – o principal ponto do primeiro ato – ou da cultura machista da sociedade – o principal ponto do segundo ato –, prefere focar no confronto com dois demônios aleatórios, cuja alta patente e presença esporádica na história não chegam a disfarçar totalmente sua insignificância narrativa. Já a tentativa de equiparar possessão mental a estupro também é súbita e completamente deslocada: além de não ser devidamente preparada, ela não faz sentido quando analisada – os demônios teriam que passar a ser equiparados a homens, contrariando o restante dos símbolos – e certamente só está lá para dar alguma sensação de conclusão ao arco das personagens.
No entanto, é válido dar crédito ao autor quanto a alguns pontos: o nome Inevera, por exemplo, que significa algo próximo de “o que ser, será” na língua krasiana, é ironicamente apropriado para uma personagem que manipula os outros com suas profecias. As proteções do corpo de Arlen, por sua vez, funcionam literalmente para atacar demônios, mas também simbolicamente para representar seu distanciamento das pessoas. Já sua recusa ao título de Salvador, apesar de irritante, serve para contrapô-lo a Jardir, enquadrando-o na típica jornada do herói.
A Lança do Deserto é um livro bem inferior a seu antecessor, trazendo um trabalho de desenvolvimento de personagem extremamente problemático, além de uma estrutura narrativa equivocada. Só resta esperar que o próximo volume seja escrito pelo Peter V. Brett da primeira metade de O Protegido e não por esse aqui.
por Rodrigo Lopes C. O. de Azevedo.
18 de novembro de 2016.
Seria até compreensível e interessante uma construção de personagem feminina que a princípio resiste e bate de frente com uma cultura opressiva, mas que ao decorrer da trama acabe sendo quebrada e aceita esses atos monstruosos com naturalidade, como algo bom e positivo. Uma espécie de síndrome de Estocolmo, onde todo o contexto e a pressão imposta por outras mulheres e personagens acabem convencendo ela de que aquilo é o certo. Só que pelas resenhas parece que o autor não tem isso em mente não, e só produziu algo sem lógica e mal planejado.
Essa parte da jornada do herói também. Ele poderia ter evitado isso. Jornada do herói é muito batida, o terceiro volume provavelmente vai ser extremamente previsível.
Ótima resenha, como sempre.
Seria um ideia realmente interessante, mas de difícil execução: necessitaria de uma preocupação adicional para impedir que a narrativa se torne conivente com as ações dos personagens. É um terreno complicado em que o autor tem que ter habilidade para não se queimar e nem tornar sua história superficial em seu moralismo. Habilidade que Peter V. Brett não demonstrou, infelizmente.