O menino que desenhava monstros.
Sumário
Genero: TerrorO menino que desenha monstros contém uma história repetitiva, personagens desinteressantes, cenas absurdas e trabalha seu tema de forma tortuosa. Assim, se o substrato metafórico de sua narrativa tinha potencial, este nunca vê a luz do dia.
Romance escrito por Keith Donohue, O menino que desenhava monstros tem uma proposta narrativa pouco usual: enquadrar o espectro autista em uma atmosfera de horror. Contudo, o tratamento que confere especificamente à Síndrome de Asperger revela-se questionável, enquanto a narrativa em si também falha ao trazer cenas de terror repetitivas, uma gama de personagens problemáticos, além de situações inverossímeis que ora apelam para um ceticismo grosseiro ou para uma artificialidade exacerbada.
Jack Peter é um menino de dez anos que sofre com Asperger e Agorafobia, vivendo isolado com seus pais em uma casa no litoral do Maine, nos Estados Unidos. Enquanto a mãe, Holly, trabalha fora para sustentar a família, o pai, Tim, cuida do filho e realiza alguns bicos para complementar a renda. O único amigo de Jack é Nick, um garoto que esteve presente em um acidente na praia que Jack sofreu três anos antes e que agravou sua condição. Um dia, porém, os problemas deles vão além de Jack quando estranhos eventos começam a ocorrer: Tim depara-se com uma criatura na estrada, Holly passa a ouvir e ser perseguida por vozes e Nick encontra os cadáveres afogados dos pais no armário, embora os mesmos estejam dormindo no quarto ao lado.
Os elementos sobrenaturais de O menino que desenhava monstros funcionam claramente como uma metáfora para as dificuldades de relacionar-se com alguém do espectro autista: da mesma forma que os problemas particulares de Jack e seus atos são incompreensíveis para aqueles ao seu redor, assim são os monstros que ele desenha, entregando-lhes vida. Não é a toa que na primeira vez que Tim enxerga uma criatura monstruosa na neve, o próprio faz essa analogia, vendo no monstro o que o filho representa: um problema intangível.
Dessa forma, a relação entre os personagens é de suma importância para a narrativa. A mãe de Jack, Holly, ganha destaque por manter uma relação quase hostil com o filho. Ela acredita amá-lo profundamente, mas não deixa de ser sufocada pelo trabalho de cuidar dele: já no início do livro Jack deixa um hematoma em seu rosto por ela tê-lo tocado enquanto dormia, uma vez que ele também parece sofrer com terror noturno. Holly, então, passa a correr sem rumo para refrescar a cabeça e a buscar conforto na religião. Seu paradoxo é simples, mas cruel: ela quer amar o filho, mas sabe que o mesmo torna sua vida muito mais difícil.
Tim, por outro lado, posa de bom pai, deixando o filho livre e mantendo o bom humor. No entanto, ele vive em negação, dizendo para si mesmo que seu filho é como os outros e que se ele agir como se não houvesse problemas, nenhum problema de fato haverá. Suas ações, portanto, transitam entre o egoísmo – deixando Holly levar toda a carga de antipatia – e o irresponsável – largando Jack sozinho, por exemplo.
Já Nick tem uma relação com Jack que beira a culpa: há um receio velado diante das ações do protagonista que mostram que Nick tem algo para esconder e que teme que o garoto faça algo contra ele.
Desse modo, construindo esses personagens, o autor prepara o terreno para uma discussão sobre os problemas relativos a lidar com alguém do espectro do autismo. O foco da narrativa não é a doença e o menino, mas, por meio dos monstros, os personagens ao redor dele e como Jack os afeta. Todavia, Donohue parece não ter nada a dizer sobre o assunto além da própria metáfora: ele prepara o terreno, mas, então, o deixa estático para sempre.
Os personagens, por exemplo, não sofrem qualquer espécie de confronto diante de suas posições. Nick, em determinado ponto chave da história, enxerga um comentário de Jack como insensível e cruel, não percebendo que ele é meramente oriundo da tendência do menino a tomar termos pela literalidade. Essa, porém, é uma lição que nunca vem, seja em termos expositivos ou simbólicos. O pai, por sua vez, continua em negação até o final, enquanto a mãe permanece uma figura amargurada. Ou seja, não é uma questão de sutileza no arco narrativo dos personagens, mas de ausência.
Como a perspectiva de Jack é apenas uma de quatro e o próprio não reflete sobre suas motivações, o menino permanece uma figura enigmática até o final. É a visão de que ele é estranho e assustador que predomina na narrativa e ela nunca chega a ser suficientemente subvertida. Ao contextualizar uma síndrome em uma narrativa de terror, o autor corre um risco de acabar reforçando um preconceito e O menino que desenhava monstros transita nesse território, ao ponto de pintar o protagonista em uma imagem até mesmo perigosa em diversos momentos – afinal, ele desenha monstros que ganham vida. Se a reviravolta final trabalha para humanizar Jack, ela surge tarde demais para ser explorada, servindo apenas para causar choque.
As cenas de terror também falham devido a partilharem todas da mesma estrutura básica. Sempre é, de início, sugerida a presença de alguma criatura, por ruídos, por vultos ou sensações estranhas. O personagem da cena apavora-se, mas tenta se convencer de que está apenas imaginando coisas. Nesse ponto, a criatura pode de fato aparecer ou não, deixando algum rastro suspeito. Tal cena funciona na primeira vez que ocorre, na segunda já nem tanto, na terceira muito menos e a partir daí elas passam a ganhar um efeito cômico. Seja com fantasmas de pessoas afogadas, com bebês deformados, criaturas brancas ou até mesmo água do mar fantasma (?), a construção da cena permanece idêntica.
Pior ainda é perceber que a fase do ceticismo ocorre mesmo após os mesmos personagens terem presenciado vários elementos sobrenaturais. O momento em que Nick corre para Holly em pânico, pois há uma tropa de bebês zumbis escalando as paredes, e ela desmerece a situação, afirmando que o garoto estava só ouvindo o vento e imaginando coisas, é particularmente engraçado, pois a própria estava ouvindo as vozes dos bebês e cogitando a possibilidade de serem fantasmas. No mesmo sentido, não se sabe quantas vezes Tim precisa enxergar uma criatura branca assustadora com traços humanoides rondando a casa para entender que ela é uma criatura branca assustadora com traços humanoides rondando a casa e não um cachorro, ovelha ou qualquer outro animal comum.
No mesmo sentido, ele deixar o filho e Nick em casa sozinhos após novamente avistar o monstro – pois o mesmo brotou na frente de seu carro, fazendo-o bater –, em vez de imediatamente voltar para protegê-los, faz praticamente nenhum sentido. Uma coisa é o personagem fazer o filho correr risco por tratá-lo como uma criança comum, outra, bem diferente, é ignorar que tem um animal gigante e, no mínimo, estranho perto da sua casa.
Inverossimilhança é um problema recorrente na história. O completo desrespeito que Holly e Tim por uma senhora oriental e seu pedido de não contar ao padre sobre suas histórias de fantasmas é incidentalmente hilário, basicamente tornando-os pessoas gratuitamente ruins. Essa senhora, aliás, que também sofre de Asperger, é, como Jack, apresentada como uma figura sinistra, chegando a dar um susto em Holly na primeira vez que aparece. Além de estereotipada – como oriental ela obviamente sabe a arte da acupressão –, a personagem ainda se enquadra em um arquétipo particular do terror, o do estrangeiro conhecedor do sobrenatural que, por ser estrangeiro, consequentemente ter contato com essa área, e que confere mais autoridade ao assunto por usar termos estrangeiros para esses elementos: yurei em vez de fantasma, por exemplo.
Outro momento particularmente problemático é aquele em que Tim entra no mar para retirar um corpo quando, duas páginas antes, estava quase incapacitado de andar porque sua coluna doía horrores – aliás, é difícil pensar em recurso mais artificial para aumentar a tensão momentaneamente do que fazer um personagem dar mal jeito nas costas de forma aleatória.
Fazendo ainda os personagens perceberem que o menino desenhava monstros que ganhavam vida apenas no clímax – algo que se intui pelo título e faz parte da premissa –, o autor ainda peca por estender o suspense por mais tempo que deveria quanto a esse ponto.
O menino que desenha monstros contém uma história repetitiva, personagens desinteressantes, cenas absurdas e trabalha seu tema de forma tortuosa. Assim, se o substrato metafórico de sua narrativa tinha potencial, este nunca vê a luz do dia.
por Rodrigo Lopes C. O. de Azevedo.
07 de outubro de 2017.