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Christine.

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Posted 11/28/2017 by in Terror

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3/ 5

Sumário

Genero:
 
Autor:
 
Editora: , ,
 
Idioma Original:
 
Título: Christine.
 
Título Original: Christine.
 
Tradução: Lido no original.
 
Edição: 1984.
 
Páginas: 503.
 
Resumo:

Apesar de ser alongada e indecisa sobre sua própria natureza, é uma prova da força de seus personagens que a narrativa de Christine continue funcionando: suas cenas de terror podem vir tarde demais e sua estrutura pode ser esquizofrênica, mas seu coração – a relação entre os personagens – ainda fascina o leitor com sua complexidade.

by Rodrigo Lopes C. O. de Azevedo
Full Article

Seguindo o padrão das histórias escritas por Stephen King, Christine é um romance mais interessado em como seus elementos de terror afetam o psicológico dos personagens, e impactam suas relações, do que em sustos ou cenas puras de terror. No entanto, se o livro é bem sucedido nesse aspecto, a narrativa acaba sendo imensamente prejudicada pela indecisão de King em estabelecer um foco narrativo consistente e adequado para os acontecimentos.

A trama foca na amizade entre dois jovens: o jogador de futebol americano, Dennis Guilder, e seu companheiro de infância, o frágil Arnie Cunningham. Um dia, entretanto, quando Arnie decide comprar seu primeiro carro, um dilapidado Plymouth Fury vermelho de 1958, uma série de desentendimentos começa a ocorrer, uma vez que Arnie torna-se cada vez mais obsessivo com sua nova aquisição, para qual ele ainda dá um nome humano: Christine.

O carinho que Dennis sente por seu amigo configura o coração do romance. Não é à toa que King posiciona o personagem como ponto de vista principal, narrando em primeira pessoa, deixando-o recontar vários episódios de união entre os dois: eles vão desde cenas de proteção física, com Dennis defendendo Arnie de bullies, por exemplo, a momentos mais delicados, como a oferta de um ombro para o outro poder chorar.

Dennis se estabelece como um protetor de Arnie, o que se reflete na forma com que o personagem enxerga a compra do fatídico carro. As metáforas construídas são relacionadas à caça, pesca ou abate, e a posição de Arnie na situação é sempre a da presa que está prestes a ser devorada. Desde sua pressa ao comprar o automóvel – que o leva a gastar mais do que deveria, fazendo Dennis pensar que ele está sendo ludibriado – até sua submissão ao dono da garagem em que ele coloca Christine – que o leva a ter sua força de trabalho explorada em troca de favores – as ações do personagem são frequentemente enxergadas com um olhar de pena: o narrador enxerga seu amigo como alguém inocente e despreparado para a vida que, sem a sua presença constante, está fadado a se dar mal. Isso confere um tom trágico à história: a perspectiva de Dennis entrega aos eventos um ar de inevitabilidade, como se cada ação de Arnie representasse mais um passo certo para sua perdição.

Christine funciona no início do livro quase como o Um Anel de Sauron em O Senhor dos Anéis: uma fonte de obsessão que transforma seu dono em uma figura possessiva e paranoica, agressiva com todos que questionam a natureza de sua relação com ela, retorcendo sua personalidade de forma a afastar todos aqueles que ama, enquanto muda sua forma de falar. No entanto, o carro também tem efeitos positivos em Arnie, gerando uma ambivalência fundamental para a complexidade da narrativa – ambivalência que, infelizmente, foi perdida na adaptação cinematográfica de 1983.

Não há dúvidas que, apesar de amar seu amigo, Dennis o enxerga como um perdedor, chegando até a se referir assim com relação a ele algumas vezes. Christine, todavia, entrega ao personagem uma força de vontade antes apenas latente em Arnie. Sua postura passiva é desintegrada aos poucos: primeiro ele enfrenta seus pais, que controlavam sua vida com mão de ferro, depois luta ele próprio contra um bully, que o ameaça perto do carro, e, em seguida, revela que só conseguiu ligar para marcar o primeiro encontro com sua namorada, Leigh Cabot, devido à influência do carro. Ou seja, ao mesmo tempo em que Christine torna Arnie uma pessoa mais violenta, intolerante e possessiva, também o deixa mais independente e seguro de si. Com relação a seu namoro, a ambivalência do carro chega a ser cruel: foi Christine que o permitiu se aproximar de Leigh, mas é ela que também o afasta da garota, dando oportunidade para ele experienciar algo que nunca poderia, mas também impedindo que essa experiência seja completa.

O carro de Arnie, porém, como revela a premissa, é assombrado. King toma um bom tempo para construir esse elemento: começa com personagens sentindo aversões fortes e injustificadas ao automóvel, passa para eles tendo pesadelos envolvendo Christine, o número de pesadelos então aumenta, certas peças e parte do carro então mostram sinais de recuperação pouco usuais, seu passado tenebroso é revelado, para, enfim, Christine se dignar a sair por aí matando pessoas. O foco da narrativa não é o carro, mas a relação entre os personagens, principalmente entre Dennis e Arnie, então faz sentido que o elemento de terror não assuma posição central nos eventos. No entanto, mesmo levando isso em consideração, o terror demora muito para vingar: as cenas de pesadelo, por exemplo, servem menos para assustar o leitor do que para lembrá-lo de que tem algo errado com o automóvel.

Contudo, as cenas de ação envolvendo Christine fazem parte de outro problema maior. Como já explicado, o narrador no início é Dennis, que reconta os acontecimentos com um ar de fatalidade. King merece créditos pela construção da voz do garoto que convence por sua linguagem informal e agressiva e fascina pelo quanto ela revela sutilmente de sua personalidade: as namoradas de Dennis, por exemplo, raramente são nomeadas e, quando são, isso ocorre pela fala de outros personagens, revelando o quão pouco importante elas são para o jovem. As reflexões sobre problemas relativos à adolescência também marcam a autenticidade do garoto, desde problemas de autoridade, como seu desgosto por adultos, a seus conflitos típicos da idade, como o medo de entrar em contato com uma garota em que está interessado.

Todavia, King comete no segundo ato do romance um erro crasso: ele muda o estilo do narrador de um narrador testemunha para uma onisciência seletiva. Ou seja, na primeira parte Dennis está conversando diretamente com o leitor, contando sua história, e, de repente, é substituído por uma voz impessoal que sabe tudo e entra na mente de todos, representando seus pensamentos. Isso leva a um problema narrativo grotesco, que chama atenção para artificialidade da narrativa ao colocar o narrador sob o holofote, fazendo o leitor ouvir a mesma história de duas vozes absurdamente diferentes: a de Dennis e a de uma divindade não mencionada. Se King tivesse mudado apenas a pessoa que estava narrando – de Dennis para qualquer outro personagem – isso não seria um problema, pois o estilo permaneceria o mesmo. Entretanto, a inserção de uma voz onisciente levanta um questionamento problemático: se Dennis era quem estava contando a história até então, quem está agora? De quem é essa voz?

Mais tarde, no terceiro ato, quando Dennis volta a ser o narrador, ele ainda faz menção aos eventos narrados no segundo, afirmando saber que o leitor já teve conhecimento deles, o que ainda torna a narrativa esquizofrênica: como Dennis teve acesso ao que essa voz onisciente disse? Afinal, ela não só disse o que aconteceu, como informou o que cada um pensava enquanto acontecia, algo que o personagem não poderia ter tido acesso, principalmente com relação aos que morreram e não puderam contar a ele. Se, em vez de uma onisciência seletiva, em que os pensamentos dos personagens são acessados, King tivesse assumido uma narrativa que emulasse reportagens, isso faria mais sentido, mas, infelizmente, não foi o caso.

Para piorar, o desenvolvimento dos personagens não muda do primeiro para o segundo ato, como deveria ocorrer com a mudança da perspectiva lançada sobre eles. Se Dennis via a mãe de Arnie como uma megera dominadora que ama o filho, por exemplo, e o pai como um indivíduo com bom coração, mas passivo diante da esposa, o narrador onisciente apresenta os dois da mesma forma, praticamente confirmando a perspectiva de Dennis como verdade universal. O personagem via os dois assim e eles realmente eram assim – algo que ocorre com relação a todos os personagens.

É fácil entender o motivo de King ter mudado o estilo do narrador: se Dennis continuasse narrando, ele nunca presenciaria os assassinatos de Christine e as maiores cenas de terror do romance não existiriam. Trocar para a onisciência permitiu que a narrativa mostrasse eventos que Dennis não presenciaria. A saída do autor, porém, foi sair da frigideira para cair no fogo: como manter Dennis narrando excluiria as cenas de ação, gerando um anticlímax – como de fato continua ocorrendo no terceiro ato, em que o fechamento do arco narrativo de Arnie não é mostrado, sendo apenas sugerido, uma vez que Dennis não o presencia –, o ideal teria sido manter a onisciência do início ao fim, embora focando mais em Dennis no primeiro e terceiro atos: assim o ponto de vista mudaria para atender a situação, mas nunca o estilo do narrador. Da forma que está, porém, ambos os estilos escolhidos trazem problemas e a mudança entre eles ainda torna a narrativa ilógica.

Por fim, King tem o hábito de ser um tanto prolixo em suas histórias e aqui não é diferente, com diversas divagações repetidas ou absolutamente desnecessárias. O capítulo 15, por exemplo, trata de partidas de futebol americano de Dennis e mostra mais um dos diversos pesadelos que ele tem, sendo, portanto, dispensável em sua totalidade. Mais para frente, o dono da garagem de Arnie recapitula todos os eventos até então, se dando ao trabalho até de organizar tudo em ordem cronológica: ou seja, em vez da narrativa seguir em frente, ela entra num modo “Anteriormente, em Christine…”.

Apesar de ser alongada e indecisa sobre sua própria natureza, é uma prova da força de seus personagens que a narrativa de Christine continue funcionando: suas cenas de terror podem vir tarde demais e sua estrutura pode ser esquizofrênica, mas seu coração – a relação entre os personagens – ainda fascina o leitor com sua complexidade.

por Rodrigo Lopes C. O. de Azevedo.

28 de novembro de 2017.


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Rodrigo Lopes C. O. de Azevedo


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